VIAGEM
A CAVALO
Viagem
a cavalo.
Antes
da construção da Estrada de Ferro Campos do Jordão
(EFCJ), o acesso a esta região, desde tempos
remotos, era feito a cavalo ou, em caso de
doentes, em liteiras ou bangüês, nomes dados a
uma espécie de padiola. Bangüê era o nome da
liteira utilizada pelos negros durante o período
de escravidão.
Várias
vezes, partindo de Pinda ou Guará, subimos a
serra das Bicas ou a do Rabelo em caravanas
chefiadas pelos meus avós as quais, por ocasião
das férias escolares, eram constituídas por
membros da família. Reuniam-se avós, filhos,
netos, genros, cunhados, amigos e servidores para
a temporada na fazenda da Guarda, já na posse de
Maria da Glória Ribeiro de Godoy, minha mãe.
O
isolamento da região, as dificuldades de acesso,
que determinavam uma viagem de dois dias, e a
precariedade de recursos locais obrigavam-nos a
planejar um estoque de provisões e de pessoal
para que tudo corresse bem e sem percalços nas
inesquecíveis temporadas na Guarda.
De
São Paulo a Pinda, tomava-se o trem de ferro. Na
estação, estava sempre esperando por nós o
trole de um fazendeiro amigo, que conduzia as
mulheres e crianças. Os demais, seguiam a cavalo
até o Ribeirão Grande.
Havia,
nas proximidades da estação central, em Pinda,
um armazém – nome que se dava ao comércio que
vendia de tudo – do senhor Moreira, que era o
abastecedor de nossas caravanas. Dele comprávamos
farinha de trigo, sal, açúcar; enfim, tudo que
se consome numa casa de uma grande família.
Embora permanecêssemos isolados, a alimentação
era farta e saborosa. Certa ocasião, após a
epidemia de gripe, em 1918, que causara muitas
mortes e debilitara um número grande de pessoas,
chegamos a levar para a fazenda um cozinheiro
renomado, pois, estando desempregado após servir
a embaixada da Rússia, ele acedeu a ir conosco.
As
paradas obrigatórias, com pouso em geral, eram
feitas em fazendas de amigos, próximas dos pés
da Serra, como a fazenda do Cel. Benjamim Bueno, a
fazendinha de Bernardo Gustavo de Godoy, e a
Borboleta, que pertencia a uma tia de minha mãe,
irmã da baronesa do Paraná.
Eram
fazendas com casarões amplos, cheios de quartos,
parecendo estar sempre esperando hóspedes. Neles,
além do leito coberto por lençóis de puro
linho, havia uma mesa com um furo circular, onde
se apoiava a bacia de louça e, ao lado, uma
jarra, sempre com água fresca para a toilette. Ao
lado da mesa, um balde para se despejar a água já
servida, de modo que a bacia estivesse sempre
limpa. Como relíquia, tenho em minha casa, em São
Paulo, umas peças dessas.
Avisados
com antecedência da nossa chegada, a tropa já
estava esperando com os cavalos e burros de carga
em número suficiente para a condução da família,
das malas e do necessário para a alimentação do
grupo.
Logo
pela manhã, após a pousada, eram selados os
cavalos e burros com as cangalhas. Os cavaleiros
acertavam suas montarias, a altura dos estribos,
os rabichos e as mantas. Este detalhe era de suma
importância a tal ponto que, pela demora de
ajuste de todos os cavaleiros, adiava-se a partida
para o dia seguinte a fim de poder sair bem cedo e
com a segurança de uma viagem sem tropeços.
Tudo
em ordem, era dada a partida. Formava-se uma
extensa fila, os cavaleiros, um em seguida ao
outro, e, por último, os burros de carga, levando
cada um, dois sacos de sessenta quilos ou malas.
Seguia-se
em ziguezagues pela serra acima para atenuar o
declive. O caminho era uma estreita trilha,
coberta de mato alto como se fosse um túnel. Pela
pouca largura, os cavalos pisavam sempre nos
mesmos lugares, formando uma interminável escada
em conseqüência do pisoteio, e agravado pelas
chuvas.
É
de se avaliar a dificuldade dos animais ao subir
estes degraus. Muitas vezes as quatro patas não
se coordenavam naquela imensa buraqueira e, então,
era tombo na certa do cavalo e do cavaleiro.
Chegando
aos Campos do Moreira, hoje São José dos Alpes,
estava vencido o mais penoso trecho da viagem e já
se sentia a delícia dos ares dos campos. Até os
cavalos acusavam a diferença, pois, trôpegos
pela subida, ao chegar no Moreira, notava-se que
queriam correr, pareciam ter recebido novas forças.
Surgia,
depois, no caminhar na direção da Guarda, a Mata
Comprida, que hoje, de carro se vence em poucos
minutos.
Eu
era garoto e a travessia dessa mata me amedrontava
quando, saindo do sol brilhante, penetrávamos
numa trilha estreita, coberta por mato grosso,
profuso em ramagens. O meu medo se tornava ainda
maior porque, conversando com adultos da região,
ouviam-se estórias de assombrações que
apareciam aos caminhantes que por ali passavam nos
tempos idos.
No
fim dessa lúgubre e temerosa travessia, saíamos
no descampado de onde era permitido ver os morros
que rodeavam a Guarda, assim confortando-nos
alegremente. Mais uma caminhada e estávamos vendo
a fazenda no fundo do vale, numa pequena elevação,
como se tivesse sido organizada por mãos divinas
para abrigar a sua sede.
Divisava-se do alto o
casarão, a pereira secular, o curral, o rancho de
tirar leite e o filete de água que atravessava o
mangueirão, que, com o reflexo do sol, era como
um fio de prata visto de longe. Era inusitada a
alegria por vencer a caminhada, por chegar em
nosso ambiente, imaginando as diabruras que faríamos,
e por estarmos em Campos do Jordão.
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