VIAGEM A CAMPOS DO JORDÃO NO ANO DE 1896, HÁ 120 ANOS.
Em
fevereiro de 1896 o Sr. João Floriano Ortiz fez
uma viagem aos Campos do Jordão com membros de
sua família e escreveu um diário descrevendo
quase tudo que se passou na ida e na permanência
em Campos, que passaremos a citar mostrando situações
interessantes de uma época que pouco conhecemos.
Resumindo passamos as datas em que essa viagem se
deu (1896):
23
de fevereiro – Partida de São Paulo para
Pindamonhangaba
24
de fevereiro – Partida de Pinda para a Raiz da
Serra
25
de fevereiro – Partida da Raiz da Serra para os
Campos do Jordão
27
de fevereiro – Chegada da bagagem a Campos
01
de março – Ida à Vila Jaguaribe
06
de março – Ida ao Itapeva
21
de março – A Volta da Bagagem
23
de março - Início
do Retorno
A
22 de fevereiro preparamo-nos para partir e tendo
a bagagem pronta enviamos com carrinho à estação
onde eu já havia comprado as passagens para
Pinda. Momentos depois volta um dos
carregadores para informar que a mala grande
estava aberta. Volto à cidade pela terceira vez,
fechei a mala e paguei o despacho. Pesaram as
malas 125kg. Importando o despacho em 19$800.
Tivemos que levar diversas malas de
mão além de um baú que devo despachar
amanhã contendo livros e outros objetos.
Dia
23 levantamos muito cedo, o carro chegou às 4
horas e partimos. Na estação grande aglomeração
de passageiros, o meu baú é confiado a um
carregador. Dificilmente nos acomodamos, e mal,
pois os três carros da primeira classe estavam
literalmente cheios. Avizinhando-se a partida do
trem, vou ao despacho de bagagens e lá vejo
grande quantidade de volumes esperando a pesagem,
falo com o chefe Gomes que me assegura que toda
bagagem será despachada, mesmo que seja com frete
a pagar. Vou de novo ao carro e logo após
procura-me o carregador dizendo que não há tempo
para fazer o despacho. Quando me disponho a sair
houve-se o sinal de partida e em seguida põe-se o
comboio em movimento. Ficou a nossa bagagem
desamparada na estação, pois não conhecemos os
carregadores, as nossas malas não têm dísticos
e nem deixamos os nomes para que no-las
remetessem. No nosso compartimento os passageiros
vão como sardinha em lata, Nhá Moça, Nhá Bi,
Babica, Lulu, Delfina e Joaquim ocupam um banco
feito para duas pessoas. Ana senta-se no soalho do
carro, eu e Nuno fazemos parte da viagem de pé,
parte sentados nas malas. Em Taubaté almoçamos
às pressas, porém fartamente. Nuno paga ao
ajudante do trem o excesso das bagagens. Chegamos
a Pinda onde encontramos o Sr. Honório Brendo que
eu havia prevenido por carta para arranjar-nos
condução. Tem à nossa disposição dois troles
e diz ter tratado um carro de bois para levar a
bagagem para a Raiz da Serra. Não tendo porém
vindo o meu baú e a mala do Nuno, resolvemos
prosseguir a viagem no dia seguinte, passando um
telegrama ao chefe Gomes. O Sr. Honório nos
indicou como melhor hotel o do Sr. José Irmão e
para lá nos dirigimos. Ficamos instalados em uma
dependência do hotel; firmamos trato com os
troleiros para partirmos amanhã; o carro seguirá
se chegar o resto da bagagem no trem misto. Às
4:30 jantamos, com muito apetite, tornando-se
sumamente grato ao nosso paladar um prato de
piabinha do Paraíba, do qual prometemos nos
lembrar sempre com saudade. O hotel tem grande
concorrência de pensão mista, a mesa de regular
tamanho não comporta todos os hóspedes. Após o
jantar fomos à estação para ver se chegou a
bagagem em resposta ao telegrama; nem uma nem
outra coisa; passo novo telegrama, extenso e explícito
ao chefe Gomes. Voltamos para o hotel e
encontramos em caminho o carreiro caipira de olhos
esbugalhados e boca mole, que pela décima vez nos
assegurara com ares de experiente que os caminhos
estão “inavegável”. Fica entendido que o
carro partirá amanhã, após a chegada do
expresso, quer venha a bagagem que falta, quer não.
Avizinhando-nos do hotel, ouço os gritos do
Joaquim (o filho pequeno) que está muito
impertinente, tendo entretanto feito a viagem
muito bem disposto, assim como a Delfina. A manhã
para porque naturalmente não é mais que manhã.
Uma chuvinha impertinente dá à tarde um tom de
tristeza impressionante.
O
Nuno tem tido dor de cabeça desde pela manhã e o
aspecto da tarde parece que agrava-a. Passa um
pouco a chuvinha, saímos em pequeno passeio pelas
cercanias do hotel que é situado à rua das Três
Entradas, vamos ao jardim do largo, onde se ergue
a igreja que se avista do hotel, tendo em frente
alto cruzeiro, com os instrumentos de suplício
que amarguraram os últimos momentos da vida
terrena do Redentor dos Homens. A noite é
silenciosa e o sono nos acode com insistência
duplicada pelas fadigas de viagem tão cheia de
peripécias.
No
dia seguinte pela manhã recebo do Sr. Irmão o
conhecimento de registro de uma carta que na véspera
eu lhe dera para enviar pelo correio para São
Paulo, contendo a chave de nossa casa, pois Nhá
Bi esquecera-se de deixar com o Olavo a outra
chave. Os troles estão prontos, tomamos café
enquanto os cocheiros arranjam as malas pequenas
na traseira dos veículos.
Nuno
continua com dor de cabeça cuja origem atribui à
terebintina que toma como anti-nevrálgico. Feitas
as preparações partimos, vamos no trole da
frente, eu, Nhá Bi, Joaquim, Lulu e Alma, no da
retaguarda vem o Nuno, Nhá Moça, Babica e
Delfina. Passamos rapidamente pelos arrabaldes da
cidade por onde o ruído estridente dos troles
chama a atenção dos gentios que aparecem nas
portas e janelas com fisionomia curiosa e ares
interrogadores. O Sr. Florêncio, nosso cocheiro,
parece que tem relações comerciais com quantos
moradores margeiam as ruas da saída, pelo menos
parece muito popular no bairro porque àqueles a
quem não dirige perguntas, com pose de quem pede
contas de ordens anteriormente dadas, atira ele um
cumprimento ligeiro ao correr do trole, num meneio
de cabeça, ora para um lado ora para outro. Já
começamos a nos implicar com semelhante
leviandade que pela segunda ou terceira vez
estanca o trole para arreliar com gente parada, em
pé, de braços cruzados, em frente às casas,
sobre um cavalo seu que ficou no pasto ou que fora
ocupado por um deles. Deixamos finalmente a cidade
e paramos no começo do aterrado onde nos anunciam
que o trole passará a ser tirado por bois em
virtude do mau estado da estrada. As coisas já
estavam prevenidas, lá já encontramos o nosso
carreiro seguido de mais quatro juntas de bois que
substituíram a nossa magra parelha de cavalos.
Atravessamos o aterrado com violentos solavancos
do trole que atolou-se até nos eixos, tirados
pelos bois que mais esforço despendem em puxar as
patas do atoleiro de barro duro e grudento;
chegados à entrada da ponte, voltam os bois para
trazer o outro trole que ficara no começo do
aterro. Enquanto isso se passa visitamos a
importante ponte do Paraíba, obra de arte do
tempo do império, sólida e elegante. (OBS: Não
é a ponte da EFCJ - Estrada de Ferro Campos do
Jordão. Essa foi construída na primeira década
de 1900).
Vencida
a difícil passagem, seguem os troles a trote pela
larga estrada, acompanhando primeiro o Paraíba,
afastando-se dele depois para entrar no vale do
Piracuama. Marginando o caminho e distantes
uma das outras de um tiro de espingarda e às
vezes de grito, levantam-se modestas palhoças que
àquela hora matutina, já indicam que seus
moradores estão de há muito despertos. Dos tetos
sobe em espirais fino cordão de fumo, revelando
que há combustível no fogão e que dão-se os
primeiros passos para o almoço.
Dos
rápidos golpes de vista lançados a carreira do
trole para o interior dessas singelas vivendas,
depreende-se que há entre esta gente são hábitos
de asseio que impressionam bem.
A
meio caminho fizemos uma parada de 10 ou 15
minutos para descansar os animais. É uma venda
de estrada, regularmente sortida. Comemos ai
algumas latas de sardinha e pão, tomamos café e
prosseguimos a viagem. O nosso trole vem desde
longe com 3 cavalos; o cavalo da chincha vem
montado pelo pequerrucho José, filho do Florêncio,
bom cavaleiro, precocemente resistente ao cansaço.
Antes de chegarmos à raiz da serra atravessamos
novo trecho de caminho em condições idênticas
às do aterrado, ai porém não temos o recurso
dos bois e temendo qualquer acidente saltamos do
trole que
passa só com o cocheiro, sendo que nós passamos
a pé por trilhas mais ou menos secas, o segundo
trole passa carregado sem novidade. Finalmente,
depois de quatro horas de viagem chegamos ao hotel
do Bicudinho, às dez e tanto da manhã.
Logo
à porta encontramos nosso novo hoteleiro a quem
de porfia atiramos seguidas perguntas sobre os
meios de condução de que nesse mesmo dia poderíamos
dispor para subir a serra; não nos
impressionava bem a triste solidão do lugar e se
antes pretendíamos continuar a viagem logo após
um pequeno descanso e ligeiro almoço, essa
pretensão transformou-se no mais ardente desejo
quando o nosso olhar interrogou os mudos cantos da
velha casa e abrangeu o limitadíssimo horizonte
daquele silencioso retiro. O hoteleiro
respondeu-nos porém friamente que nesse dia não
tinha meios de transporte que pudesse por a nossa
disposição e que talvez nem mesmo no dia
seguinte porque a condução tinha subido a serra
pela manhã e não sabia se ela regressaria. O
aborrecimento nos domina, quase que nos
arrependemos de ter empreendido esta viagem e por
pouco não
desistimos de levá-la a termo. Resignamo-nos
entretanto à força das circunstâncias e
consolamo-nos com a idéia de descansar os ossos
alquebrados pela dura travessia de maus caminhos,
fazendo entretanto jus ao já bem desejado almoço.
Passamos o dia insipidamente, jantamos às 6
horas. Às 9 da noite chegou finalmente a condução
que fora com outros passageiros pela manhã; uma
liteira, tirada por dois burros, cavalos de sela e
de carga. Às 10 horas vamos nos deitar com o
espírito preocupado por extravagantes
pressentimentos.
Dia
25 erguemo-nos cedo. Apesar de ter chovido
abundantemente na véspera, parece-nos que o tempo
permitirá a viagem sem perigo de aguaceiro. Até
7 horas da manhã não chega o carro com a
bagagem. Perscrutamos repetidas vezes o caminho até
onde a vista alcança, numa curva rápida, no
extremo da extensa linha do bambual, nada, não
vem.
Os
nossos troles voltaram na véspera; pelo Geraldo,
filho do Honório Bicudo, que viera ajudando o
cocheiro no segundo trole, escrevemos ao Sr. Irmão
para providenciar sobre a remessa da bagagem. Nuno
resolve voltar com Nhá Moça e Lulu para São
Paulo, visto não ter vindo a sua mala.
As
8 e meia mais ou menos separamo-nos, fazendo as
despedidas e trocando os mútuos desejos de feliz
viagem. A nossa comitiva compõe-se de uma liteira
onde vão Nhá Bi, Delfina, Joaquim e Alma, eu e
Babica vamos a cavalo; as malas de mão vão em
cargueiro dirigido pelo Sr. Luiz, filho do Sr.
Bicudo.
A
estrada continua acompanhando o vale apertado e
profundíssimo do Piracuama que despenha-se do
alto da serra em vistosas cachoeiras. Seguimos
silenciosamente, Delfina debruça-se na janelinha
da liteira a contemplar, inconsciente do perigo,
os abismos de cujo fundo saem rouquenhos os
rugidos da Piracuama; Joaquim, mais impertinente,
faz parte da viagem na liteira, parte em meu colo,
tomando as rédeas do cavalo que ele açula
energicamente; fadiga-se e logo exige a passagem
para a liteira, para daí a pouco, em altos
gritos, impor de novo a mudança para o cabeçote
da minha sela. A meio caminho da íngreme
subida encontramos numeroso grupo de
pedestres, que descem a passos longos e acelerados
acompanhando dois deles que transportam em uma
rede um cadáver.
Sabemos
que o indivíduo morto subira para os Campos oito
dias antes, mais ou menos, e estivera instalado na
casa do João Maquinista, próximo à Capela
Jaguaribe. Este fúnebre encontro nos
impressiona desagradavelmente, concorrendo para mais
entristecer-nos a viagem. Assim chegamos ao alto
da garganta, onde se bifurca a estrada, seguindo o
ramo da esquerda para Santo Antônio do Pinhal e o
da direita para os Campos. Há ai um morador
com um pequeno negócio e rancho de tropeiros.
Fazemos breve parada para descansar os animais,
que são desatrelados da liteira; o cargueiro é
aliviado da carga e os de sela, livres dos freios,
pastam com os outros as touceiras de capim que
pendem das margens do caminho. É aberta a nossa
cesta de virado que ingerimos à força de vontade
de comer, pois que por si era pouco convidativo não
obstante terem-nos cobrado pelo seu feitio os
hoteleiros da raiz da serra nada menos que 10$000!
Os camaradas dirigem-se à venda onde almoçam.
Findo o frugalíssimo repasto, retornamos aos
nossos postos e continuamos a subir a serra, com
surpresa minha que ouvi dizer chama-se alto da
serra o ponto em que, por momentos, pousáramos.
Continua a monotonia anterior, o sol vai-se
tornando mais quente, os nervos fatigados pelo
cansaço reclamam repouso. Atravessamos
as restingas de mata virgem porém pouco frondosa,
ora pedaços de antigas culturas em despenhadeiros
enormes; de espaço a espaço atravessa o caminho pequenos
córregos de fresca e cristalina água em pequenas
quedas brilhantes. Avistamos já algumas
pontas de lombas dos Campos, o dorso enorme do
Baú, pedra semelhante ao Cruzeiro que eleva-se de
uma cordilheira secundária,
para os lados de São Bento do Sapucaí
Mirim. Maciços de pinheirais aparecem ao
longe, em fundas grotas. Deixamos os antigos
cultivados e acompanhamos um córrego, procurando
a sua cabeceira que contornamos e entramos em novo
capão de mata. Notamos aqui a abundância de
flores silvestres que lá em baixo só conhecemos
em jardins, touças enormes de brinco de princesa,
amplamente floridas sobrepujam todas as outras. Em
nova curva do caminho passamos por uma linda
cascata, de efeito extremamente pitoresco. Saímos
finalmente da mata para entrarmos nos Campos do
Jordão. Não modifica-se o aspecto topográfico
do terreno; extremamente acidentado, cortado de
grotas tortuosas, estendem-se os Campos
a perder de vista. Começamos agora a
descer e já avistamos lá em baixo algumas casas
isoladas, caminhos cheios de curvas seguindo as
ondulações das lombas. Deixamos agora a estrada
que segue para a Capela para tomarmos a do retiro
do major Inácio onde vamos nos instalar. Andamos
ainda cerca de um quarto de légua para enfim
avistarmos a casa de vivenda do retiro. Esta
situa-se na encosta de uma lomba, entre duas
grotas bem fundas; aí chegamos as 3 e meia da
tarde encontrando o Sr. Ruiz Penteado que subira
para os Campos a 26 do mês passado com seu filho
Antônio da Silveira Penteado. Somos apresentados
pelo Sr. Penteado ao Sr. Frederico, administrador
do retiro e afilhado do major Inácio.
A
carta que tínhamos do major ao Sr. Frederico
recomendando-nos, havia eu dado em São Paulo ao
Sr. Penteado, por determinação do mesmo major.
A
casa é confortável e acomoda-nos perfeitamente,
ficamos instalados num quarto relativamente espaçoso,
contíguo a outro quarto onde ficaram Babica e
Delfina. Todos os cômodos são arejados por
janelas providas de vidraças; todos soalhados e
forrados, paredes caiadas, portas pintadas a óleo.
Nos quartos havia camas e colchões e o Sr.
Penteado obsequiosamente nos cedeu roupa para dois
leitos, enquanto não chega a nossa bagagem.
Jantamos bem e passamos a tarde em boa palestra
sobre os novos hábitos nos quais teremos de
adaptarmo-nos como arrivistas nos Campos do Jordão.
O Sr. Penteado nos conta que momentos antes de
chegarmos também ele chegava de um passeio a São
Bento para onde fora na véspera; fatigado
portanto como nós, fazia jus aos lençóis com
igual veemência para em sono reparador readquirir
as perdidas energias. Acomodamo-nos pois às 9
horas, cheios de esperanças na proverbial
excelência destes climas que, naturalmente,
pagar-nos-ão com prodigalidade em preciosos benefícios
à saúde, os grandes sacrifícios e fadigas
que houvemos despendido para buscá-los.
Dia
26 desce a condução para subir com a bagagem
amanhã. O tempo bom nos permite longos passeios.
Dia 27 chega às 2 e meia horas a nossa bagagem.
As malas estão um pouco molhadas exteriormente
porém tudo chega em bom estado, inclusive o baú
que havia ficado em São Paulo. Recebemos carta do
Nuno e Nhá Moça escritas em Pinda. Pela manhã
fomos a cavalo ao Alto da Boa Vista de onde
se avista largo horizonte. Dia 28 mostro ao Sr.
Penteado as obras hidroterápicas do sábio padre
Kneipp. Vamos lê-las com atenção para praticar
os seus conselhos vazados em quarenta anos de
observações inteligentes e experiências
concludentes.
A
primeiro de março fomos à Capela Jaguaribe,
o Sr. Penteado, o Antoninho e eu. Passamos pelo
Alto da Boa Vista cuja altitude determinarei logo
que chegue o aneróide que pedi de São Paulo.
Caminhos semelhantes aos seus colegas: descer,
subir, para termos de descer, para tornar a subir.
Já alguém fez esta observação e nós
confirmamo-la “in totum”: não há em
Campos do Jordão espaço plano onde se possa
abrir uma raia de duas quadras.
A
povoação que tem o nome de Vila Jaguaribe
nada tem de notável, não tem a categoria de
Vila, nem mesmo de Freguesia, mas não há aí
autoridade de espécie alguma, cada um manda em
sua casa e fora das portas o respeito recíproco
é mantido pela educação dos visitantes e pelo
espírito ordeiro dos naturais. A única repartição
pública que existe é federal: o correio, cujo
pessoal se resume no agente e no estafeta. A mala
postal fecha-se um dia sim, outro dia não; o
estafeta vai pela manhã a Santo Antônio do
Pinhal com a mala expedida e lá recebe o que vem
de Pinda, voltando à tarde. A povoação tem uma
boa Capela sob a invocação de Ns. Sra. da Saúde,
num espaçoso e relativamente confortável
hotel; três casas de negócio, etc..Pretendo
colher mais detalhadas informações para escrever
a tradição destes lugares e organizar uma
pequena estatística.
De
passagem no armazém do Sr. Guerino, anexo ao
hotel, aproveitamos a oportunidade de
verificar nosso peso afim de observarmos os
efeitos dos ares, das águas e do leite dos Campos
de Jordão, nunca
preconizados. A pesagem é feita numa balança
romana.
Até
hoje, dia três, temos tido mau tempo. Chega à
noite o Sr. Severiano Cruz, de Descalvado, que
vem visitar o Sr. Penteado, de quem é compadre. O
Sr. Penteado, Antonico e Severiano saem a cavalo.
O dia está enfumaçado caindo à tarde pequenos
chuvisqueiros. Passa-se mais um dia entretido pela
agradável prosa do Sr. Severiano. O Sr. Penteado
manda comprar um baralho e à noite organizamos
uma mesa de truco. Chega o Sr. Frederico da Cruz
trazendo-nos jornais cartas e o meu aneróide que
veio registrado.
Fomos
pela manhã do dia 6 ao Alto da Boa Vista cuja
altitude determino com o auxilio do aneróide,
tomando por base a da casa de morada do retiro que
é de 1618 m, segundo cálculo de um tal Helbe que
não conheço. Essa nota foi encontrada pelo Sr.
Penteado na parede de um dos quartos, escrita a lápis.
A diferença de nível entre a casa e o Alto da
Boa Vista é de 139,70m; a altitude desse ponto,
portanto, é 1757,70m.
No
dia seguinte o tempo parece que vai firmar. Temos
tido temperatura sempre agradável, apenas no dia
de nossa chegada o termômetro subiu a 24º C, dai
para cá não tem se elevado a mais de 21; pela
manhã a temperatura tem variado entre 11 e 14º
C,
durante o dia mantém-se aproximadamente em 18, à
tarde desce a 15, 14 e às vezes menos; as noites
são muito frescas.
Na
manhã seguinte saímos o Sr. Penteado, Severiano,
Frederico e eu para irmos ao Itapeva, ponto de
vista magnífico sobre o vale do Paraíba.
Seguimos o caminho da Capela até pouco adiante do
João Maquinista, ai deixamos esse caminho e
tomamos uma trilha à direita, atravessamos o córrego
e a extensa margem que ai existe, subindo depois a
lomba de cujo alto avistamos toda a Capela (povoação)
e o retiro do Monsieur Bazin, rico perfumista
do Rio que aqui passa habitualmente o verão.
Em altura que calculo de nível com a Capela, tomo
nota da pressão atmosférica para determinar a
altitude daquele ponto. Transpomos a lomba que
prolonga-se para a vertente oposta e avistamos
perfeitamente o retiro do Salto, onde está
a família do senador Bocaiuva. Descemos pela
estrada que do conde de Moreira Lima vai à Capela
e passamos pelo pasto do retiro do titular e pela
frente da casa de moradia cuja altitude determino.
Os retiros daqui são as nossas fazendas do oeste
mas quem, como nós, fazia idéia de encontrar
aqui grande movimento de pessoal para a lida de
criação e grandes dependências experimenta
grande decepção, tudo limita-se a uma casa de
moradia, mais ou menos espaçosa, uma ou outra
casa para empregados, e nada mais.
Não
há também, como supúnhamos grande criação de
gado, o pasto dos Campos não é abundante e nem
próprio para a engorda.
ITAPEVA
Itapeva,
palavra composta de Ita (pedra) e peva (pequena)
serve de denominação a uma das culminâncias da
serra dos Campos do Jordão sita no alto da serra
da Mantiqueira. É um bloco de granito que emerge
da vegetação rasteira, característica das
lombas campistas, cheio de infratuosidades, sulcos
e seios cavados pelas águas fazendo da pedra uma
miniatura da serra, com os seus contrafortes e
espigões, picos e planaltos, grotas e gargantas.
Está entre duas lombas elevadas que dão para o
vale do Paraíba e sua altitude é de 1849 m.
É
o ponto de vista mais sublime que tenho pisado.
Dele a majestade da natureza surpreende os nossos
olhos com as imagens mais grandiosas e inesperadas
que possa conceber fogosa imaginação do artista.
O deslumbramento que nos possui, orgulha e
amesquinha, faz-nos rastejar com os musgos colados
no dorso do Itapeva e ao mesmo tempo alça-nos
até a contemplação do poderoso arquiteto do
universo refletido em sua obra.
Quando
chegamos finalmente, decepção cruel e
esmagadora, o nevoeiro que tanto temíamos
inundava o espaço, cobrindo com seu manto de
opacidade a terra e o sol privando-nos de ver a
dez passos, enregelando-nos sob o orvalho fino que
nos cobria, fustigado pelo vento que soprava
forte. Julgávamos perdida a excursão que tantas
vezes adiada à espera de céu límpido coincidira
justamente com a mais espessa cerração.
Esperançados,
entretanto, na velocidade com que subiam os
vapores impelidos pelo vento e na expectativa de,
a qualquer momento romper-se a fluida cortina e
desvenda-se o cenário enorme que a imaginação
delineava e coloria, ai passamos longas horas, sem
que por um instante sequer pudéssemos descortinar
um horizonte maior de cinquenta metros de raio. De
quando em vez parece que a cerração vai
dissipar-se, pois percebemos através dela
contornos de montanhas, pedaços fugitivos de céu
anilado, mas novos turbilhões de vapores sobem os
vales estreitos, tudo toldando, tudo mergulhando
em lácteo oceano.
Após
esperanças e desilusões, quando já dispúnhamos
a abandonar o Itapeva, eis que repentinamente
rasga-se o pesado véu de alto a baixo e através
dessa fenda enorme descobrimos banhados pela luz
solar um grande trecho do Paraíba com reflexos
argênteos e em uma graciosa curva do rio, a
cidade de Pinda com suas casas brancas a
despedirem chispas de luz como se tivessem as
paredes de metal polido; além estende-se a
campina enorme, mais além ergue-se a serra de
Quebra Cangalhas e depois, por cima, fechando o
horizonte deita-se preguiçosamente a cordilheira
do Mar, cujos picos por uma ilusão de ótica,
parecem mais elevados do que o nosso ponto de
vista; acima porém da serra do Mar, não menos
grato ao olhar, é o rico painel, pois um pedaço
de céu azul mais puro estende-se até o Zenith.
Nunca espetáculo mais grandioso se apresentou
ante meu olhar, nunca admirei tanto a natureza e o
seu portentoso Criador. O cenário oculta-se de
novo atrás da pesada cerração que por mais de
meia hora impede-nos de ver, mesmo a curta distância.
Finalmente
o nevoeiro vai se adensando pouco a pouco, as
lufadas de vento trazem pelos vales acima grandes
flocos de vapor em novelos enormes que sobem a
prumo para o céu. Desfaz-se a cerração mas
deixando ver semi esfumaçado todo o extenso vale
do Paraíba que nossos binóculos de campanha
abrangem num arco de talvez cento e cinquenta
graus.
A
paisagem mostra-se em toda plenitude. Na
extrema esquerda, distinguimos muito ao longe
Cachoeira, cujas casas diminuídas pela distância
brilham ao sol; mais à direita vê-se Lorena;
mais aquém está Guaratinguetá, e em seguida
Aparecida, assente em sua penha em cujo sopé
passa a linha férrea; em frente a nós está
Pinda, à direita Taubaté, a Campinas do norte,
mais próximo ao rio está Tremembé, pequena
povoação escondida no arvoredo; além vê-se Caçapava,
mais a direita São José dos Campos, e na extrema
direita, como sob um véu de gaze a cidade de
Jacareí Serpenteando por este cenário enorme
distinguimos as curvas caprichosas desaparecendo
aqui sob uma restinga espessa, ressurgindo além
mais brilhante como se em seu leito corresse líquido
metal o majestoso Paraíba. As ondulações do
vale acentuam-se com as manchas de sombras que as
nuvens baixas projetam; pelas encostas estendem-se
lavouras mais ou menos desenvolvidas; céu de
safira, sol como inflamado rubi pendendo para o
ocidente.
Tempo
da queda das pinhas, penetra pelas matas onde
passa longo tempo. Segundo diz o Sr. Quirino,
gerente do hotel que aqui reside há dois anos, é
o inverno a melhor estação para o
estabelecimento dos tuberculosos, não só porque
o ar é mais puro e seco como porque é mais gordo
e forte o leite, em virtude dos pinhões que todo
o gado come em abundancia. O Sr. Quirino e o
seu sócio Dr. Pimentel são dois atestados
vivos em favor da excelência destes ares nas moléstias
que afetam os órgãos respiratórios. Ambos estão
hoje completamente sãos, gordos e corados. O
preconceito que há lá em baixo de que aos
doentes não convém passar aqui o inverno, é
infundado. No verão as frequentes chuvas mantém
a atmosfera excessivamente úmida e impossibilitam
os exercícios ao ar livre, tão necessários aos
convalescentes.
Voltamos
do Itapeva à tarde, tendo lá apreciado a vista
maravilhosa do vale do Paraíba, desde Cachoeira
até Jacareí. Chegamos fatigados.
Voltou
pela madrugada para Pinda o Sr. Severiano Cruz. Às
8 horas da manhã, com céu limpo, ar tranquilo,
temperatura de 16º centígrados, a pressão barométrica
no peitoril da janela é 625. Ao meio dia
reunimo-nos no pinheiro grande. Preparamos
anteriormente, em torno do pinheiro uma pequena área,
com bancos toscos, para servir de ponto de reunião.
Tomamos café e deixamos pregada ao tronco da árvore,
na altura de 2,50m mais ou menos, uma placa de
folha de flandres com os nossos nomes gravados e a
data = 10/3/96.(1896)
O
tempo arruína de novo; estou convencido que esta
época é a pior que há para aqui estar-se.
Chuvas contínuas, ar úmido, campos orvalhados,
caminhos transformados em estuários de lama
conspiram contra os visitantes que têm de ficar
reclusos entre as quatro paredes dos quartos em
uma inércia doentia até que o sol venha melhorar
um pouco o estado das coisas. Gosto muito de
trabalhar, mas com todas as comodidades, delas porém
não disponho aqui. Os objetos de escrita
guardo-os num baú, precisando abri-lo sempre que
deles necessito, a minha mesa é a mala grande,
regularmente incômoda.
Escrevi
hoje ao Sr. Bicudo da Raiz da Serra para
mandar-nos condução sexta-feira. A liteira
subirá nesse dia, deixando aqui a caixa para
descer com a mala grande no sábado; subirá de
novo domingo para descermos segunda-feira, 23 do
corrente, pela manhã. Dei a carta ao Sr.
Frederico que a entregou ao tropeiro do Sr.
Quirino que hoje mesmo desceu para Pinda.
Ao
jantar comemos carne de bugio pela primeira
vez. A carne não é lá muito saborosa,
mas atribuem-lhe virtudes prodigiosas para debelar
a fraqueza física, contando-se a respeito
verdadeiros milagres de ressurreição.
Joaquim
começa hoje a andar sozinho, será efeito do
caldo de bugio que tomou ontem? Não será a ele só
que se deve esta evolução rápida, pois devem
ter atuado favoravelmente, sobre seu pequeno
organismo, o bom clima e o bom leite destas
paragens. Graças!
As
notícias de epidemia de febres em diversas
localidades do estado são ainda desanimadoras.
Tremendo tributo esse que a anos seguidos tem-se
imposto às povoações do interior, desprovidas
de recursos e de meios profiláticos, e que no
entanto poderiam possuir muitas obras de drenagem
e saneamento se não fosse a malfadada política
que absorve todas as atividades e rendas dos municípios.
Amanhece
dia chuvoso, as 9 horas levanta-se um pouco
voltando a chover às 11; temperatura entre 20 e
21º C. Às 5 horas cai uma aguaceiro que
prolonga-se até a noite.
O
Sr. Penteado traz-nos notícias de haver rodado a
ponte que existe além do engenho da serra,
impossibilitando a passagem. O Sr. Frederico vai
à noite a Capela, a pé, para arranjar camaradas
para consertar o caminho.
Amanhece
muito limpo, temperatura 13ºC, os três camaradas
que o Sr. Frederico arranjou trabalharam sem parar
até as 10h consertando a ponte de tábuas. Passam
os camaradas para o barro preto, onde fizeram uma
pontezinha para passagem, desviando do atoleiro
que aí existe.
Chegam
as 5,30 a liteira e um cargueiro para descerem
amanhã com a bagagem. Consta que geou na Vila
Jaguaribe. Os contatos dizem que a estrada da
Raiz da Serra a Pinda dá passagem e que nos
pontos mais difíceis tem bons serviços. Fomos
verificar se a chuva da noite não estragou a
ponte que construímos. Enquanto lá estamos passa
o José Carreiro que desconfia ter sido ferido por
espinho de cobra que desconheço e vai consultar o
Sr. Raimundo, curandeiro muito conceituado em toda
redondeza, pelo que dizem é muito experiente. O
Sr. Penteado já teve ocasião de visitar este
homem, admirando-se dos vários conhecimentos que
manifesta possuir sobre a arte de curar e dos
efeitos medicamentosos da infinidade de raízes,
cipós e folhas que abundam nestas paragens.
Acho
que agora temos tudo pronto para partir.
OBSERVAÇÃO:
Este documentário foi utilizado para uma palestra proferida
pelo Dr. Mammini na Academia de Letras de Campos
do Jordão, no dia 19 de março de 2016.
O
amigo e Confrade OSMAR MAMMINI, pertence à
Academia de Letras de Campos do Jordão e ocupa a Cadeira
número 40, Patrono Luiz de Camões. Conseguiu
este documentário com um amigo pessoal e o
disponibilizou
para este nosso trabalho
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