Uma foto histórica da década de 1960 mostrando alguns alunos do nosso saudoso Colégio e Escola Normal Estadual de Campos do Jordão - CEENE, na porta da tradicional de famosa Boate 1.003, de Campos do Jordão. Como, pela idade, não podiam entrar na Boate que exigia a idade mínima de dezoito anos, resolveram tirar essa fotografia em frente, durante o dia, para guardar como recordação. Infelizmente não consegui identificar os rapazes que estão em frente à Boate. Essa Boate ficava em Vila Abernéssia na Rua Brigadeiro Jordão, número 1.003, daí seu nome.
A BOATE 1.003, O WERNER E A FRIDA
A Boate 1.003, casa noturna, com bar e pista de dança, aberta no início da década de 1950, de propriedade dos alemães Werner e Euphrida Ruhig, a Frida, foi estabelecida na Rua Brigadeiro Jordão, 1.003, responsável pelo nome famoso e conhecidíssimo e muito procurado pelos boêmios e amantes da boa música, da dança, da tranqüilidade, dos lanches especiais, dos encontros amorosos e até dos encontros de amigos para bater um bom papo, tomar alguma bebida e degustar iguarias especialmente preparadas pelo casal. Permaneceu em pleno funcionamento durante mais de duas décadas, aqui em Campos do Jordão.
Werner, um alemão que veio acidentalmente para o Brasil, no finalzinho da década de 1930, a bordo do famoso navio alemão Windhuk (canto do vento), cujo destino, na realidade, não era o Brasil.
Depois de algum tempo no Brasil, os alemães do Windhuk ficaram hospedados no próprio navio, no porto de Santos - SP.
Posteriormente, Werner Ruhig, ficou aprisionado, por algum tempo, com seus companheiros de viagem, em uma das fazendas prisão, quase um campo de concentração, no Vale do Paraíba - SP.
Quando deixaram essa prisão, muitos desses alemães tomaram vários destinos aqui no Brasil. Alguns poucos voltaram para a Alemanha. Werner e outros companheiros do Windhuk vieram para Campos do Jordão no início da década de 1940.
Os oito que vieram para Campos do Jordão foram: Werner Ruhig,Wolfgang Böhme,Helmut Bügner,Wilhelm Patzke, Paul Scherer, Willi Schlote, Heinz Bohme e Willy Bartz.
A totalidade desses que vieram para Campos do Jordão acabou se destacando no ramo da hotelaria, especialmente no Grande Hotel, restaurantes e confeitarias da cidade, como barmen, cozinheiros, garçons, maîtres d´hotel, gerentes de hotéis, cabeleireiros, confeiteiros; enfim, em atividades ligadas ao ramo da hotelaria e do bom atendimento ao turista.
Tivemos, na década de 1950, por volta dos anos de 53 a 55, bem no centrinho de Vila Capivari, um desses alemães de nome Helmut Bügner que, depois de trabalhar como açougueiro no Grande Hotel, resolveu se estabelecer por conta própria e inovou em seu pequeno açougue, fabricando deliciosos frios, como mortadelas, embutidos diversos e deliciosas salsichas à moda que só os alemães sabem magistralmente preparar.
Na década de sessenta e início da década de 70, também foi destaque o Wilhelm Patzke ou Willy Confeiteiro, como era chamado, que começou com sua famosa Confeitaria que levava o seu nome, na casa em que morou, situada na avenida que liga Jaguaribe a Capivari, bem na esquina que dá acesso à Vila São Francisco, transferindo-a posteriormente, para o centro turístico de Capivari, lá permanecendo por muitos anos.
O Willi Schlote, o Paul Scherer, o Heinz Bohme e o Willy Bartz acabaram trabalhando todo o tempo no nosso saudoso Grande Hotel de outrora.
O Wolfgang Böhme se estabeleceu aqui em Vila Abernéssia, por várias décadas, com o tradicional Hotel Montanhês, bem em frente ao jardim, no prédio mais tradicional e antigo da cidade onde, até pouco tempo, esteve sediada a Prefeitura Municipal.
Vamos deixar de viajar e retornar ao tema principal de nossa história.
O Werner casou-se com a Frida e, juntos, idealizaram e abriram a Boate 1.003, na Rua Brigadeiro Jordão, aqui em Vila Abernéssia, nas proximidades dos fundos do atual Espaço Cultural “Dr. Além”.
A Boate foi habilmente adaptada na casa onde o casal residia, de propriedade do construtor Floriano Rodrigues Pinheiro.
No pequeno hall de entrada da casa, fizerem um pequeno e gracioso barzinho que ficava voltado para uma pequena sala (um antigo quarto da casa) onde ficavam duas pequenas mesas com cadeiras. Na sala havia duas portas: uma nos fundos, que dava acesso à cozinha da residência do casal que, também, servia a Boate, e outra na lateral, que dava acesso ao banheiro para uso da Boate (com relação a esse banheiro, em outra história contarei um caso interessante e hilariante lá acontecido). Nessa sala, normalmente, as pessoas e os amigos desacompanhados se acomodavam para tomar uns drinques, comer algum petisco e bater papo. Nesse local, a iluminação era reduzida, porém, quase normal.
Lembro-me, perfeitamente, de que na parede ao lado do bar existia pendurado um quadro com a imagem da Pedra do Baú, um pinheiro em uma tarde de céu crepuscular, especialmente desenhado pelo José Aluízio Diana, pessoa intimamente ligada às artes em geral e afeiçoado pelo terceiro sexo.
Esse quadro havia sido pintado com tintas acrílicas e, com o efeito de uma luz negra habilmente colocada à sua frente, dava um efeito muito bonito e bastante agradável.
Mais no interior da casa, mais três cômodos interligados abrigavam várias mesas e bancos, normalmente duplos, para que os casais pudessem se sentar juntos, ouvir uma boa música da época – Ray Conniff, Billy Vaughan, Paul Mauriat, Glenn Muller, Pat Boone, Ray Charles, Frank Sinatra, Johnny Mathis, Dick Farney e Lucio Alves, Nelson Gonçalves, Silvio Caldas, Carlos José, Agnaldo Rayol, Agnaldo Timóteo, Francisco Petrônio, Cauby Peixoto, Renato e seus Blue Caps, Sérgio Mendes, Ângela Maria, Elizeth Cardoso, Maria Bethânia, Gal Costa etc.
Na sala do meio, a mais ampla de todas, havia uma pequena pista de dança, onde os casais apaixonados podiam dançar de rostos colados e até dar uns beijinhos furtivamente, sempre se escondendo dos olhares atentos e rigorosos do Werner que, sempre, se preocupava e muito, em manter a boa reputação da sua casa noturna.
Nessa sala, no teto, havia um céu especialmente desenhado, com uma pequena lua e várias estrelinhas, que também iluminado por uma pequena luz azulada, dava um efeito bastante bonito e inesquecível.
Nessas salas, a iluminação já era bem diminuta, com lâmpadas coloridas e acondicionadas em lustres feitos com pequenas rodas de carroças.
Nesse recinto aconchegante, de muito respeito e sério, embora muitos que nem chegaram a adentrar aquele local e sem o conhecer, realmente, insistiam em propagar que lá era uma verdadeira orgia, uma bagunça, uma p.........ria.
Posso afirmar com toda segurança e com toda a minha honestidade e, tenho certeza, esta minha afirmativa será corroborada por todos aqueles que freqüentaram aquele saudoso e maravilhoso local, que a Boate 1.003 do Werner e da Frida sempre foi um local de muito respeito, sério e impecável. Nada do que aconteceu lá, em todo o seu tempo de funcionamento, sob a direção desse casal maravilhoso, pode ser taxado ou considerado de anormal, desrespeitoso ou imoral. Muitas pessoas de famílias tradicionais de Campos do Jordão e turistas que tinham suas casas de férias na cidade lá se reuniam nas noites e madrugadas, em encontros magistrais, para celebrar aniversários e comemorações diversas.
Claro, em algumas oportunidades, alguns casais tentavam exceder os limites da liberdade, dos bons princípios e do respeito ao lugar público onde estavam.
Até a D. Frida chamava a atenção dos casais que se excediam nos carinhos, porém, de uma maneira militarizada, bem diferente daquela habilidade do Werner.
Um amigo, o Pedrinho Paulo, me contou que, em certa oportunidade, estava dançando com a namorada, que hoje é sua esposa, se excedeu nos beijinhos e levou uma bronca violenta da D. Frida.
Também, é verdade, muitas mulheres iam para aquele local em busca de uma companhia masculina e, em contrapartida, muitos homens que lá freqüentavam iam em busca de uma companhia feminina. Isso, porém, nada tem de imoral ou de reprovável; sempre foi assim e, até certo ponto, com algumas alterações na formação de casais, continua sendo da mesma forma.
Sem dúvida, em se tratando de um local público, muitas surpresas inesperadas puderam ser presenciadas, especialmente, de relacionamentos e envolvimentos amorosos inimagináveis.
O local, nessa época, apesar das observações acima mencionadas e que, a meu ver, eram absolutamente normais para a época, menos gritantes e chocantes que as situações presenciadas, que acontecem com certa naturalidade atualmente, posso garantir, era muito bem freqüentado e havia muito respeito. Eu, o Pedro Paulo Filho, o Dudu Nejar, o Homero Zen e muitos outros amigos de longas datas, muitas vezes estivemos lá, acompanhados das mulheres que hoje são nossas esposas.
O Werner, além de ser o dono da Boate 1.003, trabalhava com a Frida, sua esposa, praticamente sozinhos no local.
A Frida comandava o bar e a música através do pequeno amplificador de som e de um antigo toca-discos que executava as músicas dos discos LP e compactos de vinil, e também ajudava na preparação dos drinques e lanches preparados hábil e maravilhosamente pelo Werner.
A Frida era uma pessoa boa e gentil, porém muito séria e que se mantinha quieta em seu local de trabalho, não dando muita oportunidade para conversas.
Ele, na época em que freqüentei sua Boate, já era um senhor de mais de cinqüenta anos, muito simpático, gentil e amável, com seus lindos cabelos brancos, seu uniforme composto de camisa branca, gravata preta, paletó branco e calça preta – fazia o trabalho do garçom extremamente educado, com seu especial e cativante sotaque português-germânico (embora andando com certa dificuldade, puxando uma das pernas, devido a uma doença, segundo um médico ortopedista meu amigo, chamada espondilite anquilosante (EA), doença reumática que causa inflamação na coluna vertebral e nas articulações sacroilíacas (no final da coluna com os ossos da bacia), responsável por sérias e diversas conseqüências, dificultando até um simples passo para caminhar). Atendia as pessoas nas diversas mesas, tomando nota dos pedidos, preparava os drinques e lanches e depois ia servi-los nas mesas.
Era tão educado que eu, na época, tinha perto de meus dezoito anos de idade, e ele nunca me chamou de você, sempre de senhor, mesmo depois de pedir inúmeras vezes para não me tratar assim. Agia dessa maneira com todos os seus clientes.
Na época, os drinques mais solicitados e que eram preparados com maestria pelo casal eram: cuba-libre (mistura de rum com coca-cola), HI-FI (mistura de crush ou suco de laranja e vodka), Gin-Fizz (mistura de gin, suco de limão e soda), whisky souer (mistura de whisky, suco de limão e açúcar, servido em taça de coquetel incrustada de açúcar), Dry Martini (vermute seco, gelo e uma azeitona espetada no palito), Daikiry (rum branco, limão e açúcar), Bloody Mary (vodka, gotas de limão e molho inglês, sal, pimenta-do-reino branca moída a gosto) e muitos outros, além da tradicional cervejinha servida em garrafas pequenas, para não ficar com aquele aspecto de botequim barato.
A parte comestível era preparada, também, com muito carinho e habilidade. Para acompanhar qualquer bebida, o Werner sempre servia os seus famosos amendoins torrados e salgadinhos, preparados por ele com maestria, com um segredinho que, uma noite, ele muito discretamente me contou: antes de serem colocados na assadeira para torrar, eram passados em clara de ovo batida em neve e adicionado o sal, tomando o cuidado para não torrar em excesso. O misto-quente, o churrasquinho servido no pão francês, o bauru e o americano, todos eram divinos. Uma iguaria servida magistralmente e com o toque de um “chef” alemão, disputadíssima nas madrugadas, era o Beef-Tartar, iguaria feita com carne moída crua, temperada com salsinha, cebola, pepino em conserva, alcaparra, mostarda e azeite e era servido com pão de forma ou pão francês cortado em fatias e manteiga.
Que saudade do 1.003, do Werner e da Frida. Lá passei bons momentos de minha vida e, tenho certeza absoluta, muitos, igualmente, passaram momentos inesquecíveis naquele local maravilhoso.
Muitas vezes fui àquele local sozinho ou com amigos, só para ficar ouvindo, com muita tranqüilidade, músicas especiais e maravilhosas, conversar com os amigos, acompanhado de apenas um pequeno drinque, visto que as condições financeiras da época não permitiam outras coisas.
Outras pessoas e amigos faziam o mesmo. Era comum encontrarmos lá o Pedro Paulo Filho – freqüentador assíduo que me disse, recentemente, ter sido o primeiro cliente da Boate quando inaugurou e, também, que foi o último quando o Werner e Frida venderam o estabelecimento –, o Sebastião Rodrigues, o Tião do Sindicato, o Mário Andreoli, Oficial de Justiça, o Joaquim Calleres do Amaral, Investigador de Polícia, o Plínio Scherer, banqueiro do Jogo de Bicho, o Orlando Coelho (português), o Agripino Lopes de Moraes, Comissário de menores e político; enfim, uma centena deles.
Quando fiz parte da Diretoria do Tênis Clube, por mais de seis anos, na década de sessenta, na administração do querido e saudoso Plínio Freire de Sá Campello, cognominado de “O Prefeito da noite”, que presidiu aquele clube por mais de trinta anos, muitas vezes, depois que o clube fechava suas portas, após os horários estabelecidos para o funcionamento noturno, em sua companhia e de outros amigos comuns, como José Maugeri Neto, Paulo Percifal, Monsieur Lebrun e amigos de férias, freqüentadores do Clube, vínhamos até ao 1.003 para saborear as iguarias e saciar a fome, tomar o drinque derradeiro e, também, em busca de uma boa conversa que lá, sempre era encontrada.
Por ironia do destino, já há bastante tempo, comprei e moro na casa de número 1.029 da Rua Brigadeiro Jordão de Vila Abernéssia, bem ao lado da saudosa Boate 1.003, o que me obriga a estar sempre me lembrando, com muita saudade, desse lugar maravilhoso que me proporcionou muita alegria e felicidade, da Frida e do Werner que, temos certeza, devem estar viajando felizes, em águas calmas, talvez acompanhados dos companheiros da viagem inicial, agora a bordo do Windhuk celestial.
Enfim, o 1.003, a Frida e o Werner fizeram parte da gloriosa e rica história da nossa Campos do Jordão do passado, que, hoje, fazem muita falta e jamais serão imitados ou substituídos.
Campos do Jordão, 28 de fevereiro de 2007.
Edmundo Ferreira da Rocha
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