Exemplares da Calvila, o primeiro Calvados brasileiro, produzido em Campos do Jordão.
CALVILA, O PRIMEIRO “CALVADOS” BRASILEIRO, PRODUZIDO EM CAMPOS DO JORDÃO
“CALVADOS” – O primeiro brasileiro, de nome “CALVILA”, foi produzido em Campos do Jordão – SP, na década de 1950.
Antes de falarmos da Calvila, o primeiro “calvados” brasileiro produzido na cidade de Campos do Jordão – SP, são indispensáveis alguns esclarecimentos, especialmente sobre o que é “calvados” (como se escreve em francês), razão desse nome, origem e procedência, dados históricos, do que é feito, maneira de servir etc.
CALVADOS é uma região da Normandia, região litorânea a noroeste da França. A região é definida como um “mundo de paz e silêncio, recortado por estradinhas bucólicas que atravessam pequenas vilas em cuja vizinhança se misturam fazendas seculares, construídas em pedra, cercadas de muros baixos, também de pedra, e antigos castelos ducais. Essa paz que foi sendo intercalada nas brumas do tempo pela marcha de exércitos. Legiões romanas, bandos vikings, exércitos normandos, tropas de Hitler e, por fim, exércitos aliados de libertação do domínio nazista deixaram pegadas que deram à Normandia uma história militar. As suas estradinhas normalmente ladeadas por “bocages”, emaranhado de espinheiros e de matagal que formam uma barreira natural de proteção usada como esconderijo para os soldados que por ali passaram durante milhares de anos” (1). “Tal qual um enorme Éden, as macieiras dominam a paisagem. Cerca de nove milhões delas garantem a imagem de cartão-postal campestre, ilustrado por vacas que pastam em torno de árvores floridas em vales verdejantes”(2).
Calvados também é o nome de famoso destilado alcoólico, extremamente fino, produzido com a sidra, suco fermentado das maçãs, preferencialmente as agridoces, do tipo mais ácido, ricas em taninos. Há quem diga que é um conhaque à base da maçã. Em alguns casos, também é produzido com pêras, que lhe conferem mais açúcar. Segundo dados históricos, já eram produzidos na Baixa-Normandia, desde o século 16. Esse nome deriva de El Salvador, navio pertencente a uma frota da armada espanhola, carregado de “brandy” de sidra, que encalhou ou naufragou em 1558 na costa da Normandia. Rapidamente, a saborosa aguardente que trazia encantou e cativou os moradores daquelas terras. “Entretanto, como estes não sabiam pronunciar corretamente o nome da embarcação, El Salvador, por deformação fonética o chamaram de “calvadó” (escreve-se “calvados” em francês), fazendo dela sua bebida regional” (2). “Somente em 1790 o nome Calvados foi oficializado e em 1942 tornou-se uma região demarcada. Depois de devastadas durante a II Grande Guerra, as destilarias foram reconstruídas e os tradicionais métodos antigos substituídos por agricultura moderna de grande rendimento.” (2)
“O sucesso desse fino destilado de fruta fez com que, em 1946, ela recebesse a denominação de “Appellation Contrôlée” – sistema que atesta a origem e o procedimento para a elaboração da bebida. O “Calvados du Pays d´auge”, como é designado, não possui somente os atributos da melhor “eaux-de-vie” – a essência da fruta – mas a elegância do conhaque. É uma versão diferenciada, e muito superior, a qualquer outro destilado de maçã que possa existir. No processo de elaboração as maçãs são espremidas e depois fermentadas por pelo menos seis semanas. Depois do mosto destilado duas vezes em alambique tradicional, ficando em barris de carvalho para descansar. Alguns destilados, a partir do século XVIII, ganham o benefício do envelhecimento. O processo de envelhecimento é justamente o que faz do Calvados uma espécie única entre os destilados. A interação com a madeira e o ar dos barris enriquece o Calvados com os taninos do carvalho, intensificando o buquê, assim como acontece com o conhaque, ocasionando toda a complexidade do seu sabor, mudando a sua cor de dourada para tons de âmbar. Quanto mais ele envelhece, mais macio ele se torna. Com o tempo surgem as notas de vanilla, amêndoas e nozes, bem como maciez e suavidade” (2). Para a produção do calvados, “a AOC Calvados autoriza a dupla destilação em alambiques de cobre ‘charentais’, iguais aos do conhaque, ou em coluna contínua para quase todos os calvados. Para alguns a dupla destilação é obrigatória. Nos primeiros, os aromas são complexos, delicados e ricamente frutados e o potencial de envelhecimento é longo; nos últimos, os aromas e sabores são mais frescos, a maçã fica muito evidente e o sabor menos complexo.
“Ambos os processos resultam em “eaux-de-vie” com 72% de álcool (antes de engarrafar é reduzido para 40-45% com adição de destilados mais fracos também da região). Colocadas em barricas de carvalho para envelhecer em períodos variáveis – alguns podem chegar a 40 anos – embora dois sejam o mínimo para ser colocado à venda. Ainda no período de repouso há uma redução sucessiva no teor alcoólico por evaporação, cerca de 1% ao ano.” (2)
O calvados é servido, normalmente, na temperatura ambiente e após as refeições para facilitar a digestão ou “queimar as gorduras”. “Na Normandia, por tradição, se oferece o Calvados na metade da refeição para provocar no estômago das pessoas o chamado ‘trou normand’, literalmente ‘buraco normando’. Consiste em fazer crer que isso esvazia o estômago, permitindo que se coma tudo novamente. Essa, sem dúvida, é uma boa desculpa para os glutões justificarem seu apetite.” (2) Para servi-lo, utiliza-se um copo do mesmo tipo daqueles utilizados para servir o conhaque. É comum utilizá-lo na preparação de diversos tipos de coquetéis em substituição aos conhaques, drinks e sorbets (sorvete feito de suco de frutas ou licor).
(1) - site: www.lugaresdomundo.com
(2) - site: www.taste.com.br – por Ennio Federico.
Acredito que o assunto esteja satisfatoriamente esclarecido.
Vamos passar agora ao tema proposto, visando registrar os principais detalhes que envolveram a nossa Calvila, o primeiro “calvados” brasileiro, produzido desde o início da década de 1950, até quase seu final, em Campos do Jordão, cidade localizada na Região Sudeste do Estado de São Paulo.
A maçã começou a ser cultivada aqui na Serra da Mantiqueira, na Cidade de Campos do Jordão, trazidas as primeiras mudas, mais por absoluto saudosismo, pelas mãos dos primeiros portugueses que para cá vieram no início de século 20. Já em 1905, como amador, o Sr. Julio Fracalanza começou a plantar macieiras.
Posteriormente, em 1942, o Sr. Paul Ludwig Gustav Edward Bockmann, um alemão que muito trabalhou para a divulgação de Campos do Jordão, por meio dos cargos que ocupou, na época, junto na Administração Pública Estadual, graças ao íntimo relacionamento com o Dr. Adhemar de Barros, Governador do Estado, iniciou, com intuito e base exclusivamente econômica, a primeira plantação de maçãs no famoso Vale do Baú, parte pertencente ao município de Campos do Jordão.
Em 10 de março de 1949, surgiu a Empresa “Belfruta Ltda.”, constituída por Paulo Bockmann em sociedade com Adhemar de Barros, instalada em Fazenda com área de 1.800 alqueires, localizada entre o Palácio Boa Vista e a Pedra do Baú, com altitudes variando de mil a mil e oitocentos metros. Essa empresa representou obra pioneira no que diz respeito à cultura de frutas de clima temperado e possuía, naquela época, vastos campos de experimentação e inúmeros viveiros de produção de mudas. Seus pomares contavam com vinte mil macieiras, dez mil pereiras e cinco mil pessegueiros, além de uma plantação de framboesas com mais de vinte alqueires.
Na seqüência, a própria empresa iniciou a industrialização, em fábrica própria, das frutas produzidas em sua Fazenda Belfruta.
Entre os produtos que foram industrializados pela Fazenda Belfruta, além dos excelentes sucos, especialmente de framboesa, estavam as famosas geléias de frutas e doces diversos, de qualidade excelente, afirmando-se que nem “no estrangeiro, sejam melhores”, conforme assegurado e registrado na Revista “SOMBRA”, em 1951. Iniciaram, também, no início da década de cinqüenta, a fabricação da CALVILA, um destilado, uma aguardente feita da sidra, suco fermentado de maçã, de finíssima qualidade e saborosíssimo paladar. Como diziam na época, “se não for igual à sua similar estrangeira de origem francesa, então é porque é melhor”. O primeiro “calvados” brasileiro, bebida que, em pouco tempo, obteve sucesso espetacular nos mercados consumidores do País. Até hoje, é desesperadamente procurada pelos apreciadores dessa bebida dos deuses, inclusive por colecionadores, nas mãos dos quais ainda, felizmente, são encontrados alguns poucos exemplares que são as testemunhas vivas, provas dessa época ímpar e áurea da agricultura e indústria jordanense.
A Belfruta recebeu um grande apoio do governador Adhemar de Barros e recebeu muitos elogios do Presidente da República, Dr. Getúlio Dorneles Vargas, quando de sua visita a Campos do Jordão no ano de 1951, aceitando com grande alegria o convite e o oferecimento da Sociedade Amigos de Campos do Jordão, que o fez seu Membro Honorário, ficando hospedado por cinco dias na Fazenda Belfruta, de propriedade do anfitrião Paulo Bockmann e sua esposa, Sra. Martha.
É de se registrar, também, que o nosso ilustre Presidente da República, Dr. Getúlio Vargas, fez sua viagem até Campos do Jordão de helicóptero, que pousou nos jardins da Fazenda Belfruta.
Nessa sua estada em Campos do Jordão, na Fazenda Belfruta, reuniram-se, na residência dos anfitriões, o Dr. Adhemar de Barros, o governador Lucas Nogueira Garcez, o vice-presidente da República Dr. Café Filho, Erlino Salzano, Ricardo Jafet, o ministro Danton Coelho, o Governador do Paraná, Munhoz da Rocha, o senador Napoleão de Alencastro Guimarães, o deputado federal Mário Audrá, o deputado mais votado do País, daquela época, Luthero Vargas, e o Prefeito Municipal da Estância de Campos do Jordão, Sr. Paulo Cury.
Na ocasião, conforme consta da Revista ”Sombra”, o anfitrião Paulo Bockmann serviu aos seus convidados e hóspedes a deliciosa CALVILA, destilado de maçã, que muito agradou a todos. A bebida foi servida pura e gelada, porém alguns a saborearam como refresco, misturada com água tônica e uma fatia de limão.
Nessa sua visita à Fazenda Belfruta, “o Presidente Getúlio Vargas assistiu a um verdadeiro desfile dos magníficos produtos por ela industrializados, além do delicioso “distilato” de maçã de nome Calvila, que, pela sua qualidade, supera a famosa bebida francesa denominada ‘Calvados’. Este produto obteve do Presidente manifestações de maior apreço. Os demais produtos da fabricação, ou seja, os seus sucos e geléia de framboesa, geléia de pêssego e damasco, também devidamente apreciados pelo Presidente, que teve para cada um desses excelentes produtos uma expressão de entusiasmo”. (Jornal “A Cidade”, de 17/junho/1951).
Em conseqüência e em decorrência dessa cultura pioneira e inédita da maçã em Campos do Jordão, dentro de um clima de intensa produtividade da fruticultura jordanense, aliado aos sucessos técnicos e econômicos da Belfruta, eclodiu um evento promocional e turístico notável, de repercussão nacional, denominado “FESTA NACIONAL DA MAÇÔ, sendo a primeira realizada nos dias 6, 7 e 8/março/1953, e as seguintes nos anos de 1954, 1955 e 1956, com grandiosidade espetacular e notória. Nos anos seguintes, continuou a existir, já sem a continuidade anual, como tentativas abnegadas e acanhadas, no sentido de evitar que viesse a acabar. Infelizmente, em 1961 foi realizada a 6ª e última Festa da Maçã de Campos do Jordão.
Durante todo esse período da década de cinqüenta, a Calvila, o nosso primeiro “calvados” brasileiro, foi fabricada, com muito esmero, em larga escala e distribuída nos principais mercados do País, para satisfação de seus apreciadores.
Lamentavelmente, em 1957, acabou a fabricação da Calvila, o primeiro “calvados” brasileiro. Infelizmente, em decorrência de uma divergência entre os sócios, Paulo Bockmann e Adhemar de Barros Filho, a Belfruta Ltda. foi dissolvida.
Assim, estamos atualizando a memória da nossa história, não só jordanense, mas também brasileira, para que a verdade sobre a Calvila, o primeiro “calvados” brasileiro, fabricada na Cidade de Campos do Jordão, Estado de São Paulo, não venha a se perder com o decorrer do tempo, ficando no esquecimento, dando oportunidade para que outros interessados nessa glória, sem o devido conhecimento da história, venham a lançar mão deste fato inédito, importante, notável e pioneiro que, inclusive, está documentado pelas principais revistas e jornais da década de 1950, contando com o aval de ilustres políticos, governadores e até do Presidente da República, da época.
Muito tempo depois, na década de 60, o Sítio Natal, de propriedade do barão e da baronesa Von Lightner, localizado nas proximidades do Palácio Boa Vista, por meio de muito esforço e dedicação do administrador Max Ambühl, um suíço radicado em Campos do Jordão, e dos empregados daquela Fazenda, a Agro Industrial Campos do Jordão Ltda., responsável pela fabricação de excelentes produtos, incluindo diversos tipos de geléias de frutas e conservas, com a marca HOMEMADE, conseguiu-se fabricar, por mais de duas décadas, um outro destilado de maçã, um outro, talvez o segundo “calvados” jordanense e brasileiro e, também, de outras frutas, denominados “Eaux-de-vie”, muito apreciados e distribuídos aos mercados do País. Em 1993, a fabricação, também, foi paralisada pelos proprietários que assumiram a propriedade.
Campos do Jordão, 25 de abril de 2007
Edmundo Ferreira da Rocha
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