Camargo Freire - Pequenas histórias sobre o Grande Mestre.
Professor Camargo Freire com sua paleta e pincel, pronto para pintar mais um lindo quadro
MARMITA CHEIA DE NHOQUE
Contaram-nos a professora Zilda Corrêa e seu marido, o amigo Juca Correia, que foi estabelecido no Mercado Municipal por quase quarenta anos, com o comércio de gêneros alimentícios (secos e molhados como comumente se dizia), grandes amigos do professor Camargo Freire, que, quando eram vizinhos e moravam ali na Vila Guarani, proximidades do saudoso Círculo Operário de Campos do Jordão, de muitas e maravilhosas histórias, sabendo que o amigo adorava nhoque, toda vez que faziam esse prato típico da culinária italiana – massa feita de batata, farinha de trigo, ovos e queijo, que depois de habilmente amassada é cortada em pequenos pedaços arredondados, cozida e regada com molho especial de tomate, feito caprichosamente e com muito carinho e, por último, polvilhada com um bom queijo parmesão –, não se esquecia de deixar uma boa marmita dessa especialidade para o professor Camargo Freire.
Toda vez que isso acontecia, no final da tarde, quando o professor chegava em casa, após sua jornada de trabalho como professor de desenho no Colégio Estadual, ela ou o Juca ia entregar a marmita de nhoque para o amigo.
Contam, com muita saudade, emoção e satisfação, que, quando iam entregar a marmita de nhoque para o professor, ele, com aquele jeitão simples, com muita simpatia, alegria e ar jocoso, sempre falava a mesma coisa: “Muito obrigado, mas vocês deviam ter enchido bem a marmita, assim daria para comer agora e amanhã no almoço”, e dava uma gostosa risada.
A FILHA DA ELDA RANDOLI E O PROFESSOR CAMARGO FREIRE
A grande amiga e professora Elda Randoli, minha professora do curso de admissão ao ginásio, juntamente com o saudoso, grande amigo e professor Raul Pedroso de Moraes, seu cunhado, nos idos da década de 1950, no salão da Igreja Metodista de Campos do Jordão, contou-me a seguinte história sobre o professor Camargo Freire, seu professor na época do ginásio e curso normal, aqui no nosso saudoso CEENE - Colégio Estadual de Campos do Jordão, e seu grande amigo.
Em certa oportunidade, quando já morava na vizinha cidade de São José dos Campos - SP, o professor Camargo Freire foi visitá-la. Sua filha, ainda uma pequena garotinha, era muito arredia e de difícil relacionamento com pessoas, principalmente estranhas. Quando o professor Camargo entrou, a menina ficou de longe só espiando e nem chegou perto dele. Ele, com a sua grande experiência e habilidade didática de professor, com alto conhecimento de relacionamento com crianças e jovens, fazia de conta que nem tinha visto a menina. Conversou normalmente com a Elda, contou piadas como sempre, e nem olhava para o lado onde estava a menina. Em determinado momento, contou-me a Elda, a filha foi aos poucos se aproximando de onde estavam, porém o professor Camargo continuava a ignorá-la. Para sua surpresa e até emoção, viu quando a filha, parecendo que já era íntima e amiga de longa data do professor, sem a menor cerimônia, meteu-se entre seus braços e sentou-se em seu colo carinhosamente. Contou-nos, ainda, a Elda, que aquele foi um momento muito especial, inesquecível, único e emocionante, ficando ali, naquele instante, demonstrada toda a habilidade, capacidade e facilidade do professor Camargo Freire no relacionamento humano, especialmente com uma criança que, a princípio, se mostrava muito arredia e distante.
O QUADRO FURADO
Paulo Eduardo Bittencourt Vieira, sobrinho-neto do professor Camargo Freire, filho da sobrinha Neuza, casada com o amigo Teodoro, de São José dos Campos – SP, lembrou que o tio contava, com muita propriedade e com aquele jeito cômico que somente ele sabia fazer, que, em determinada oportunidade, quando fazia o esboço de um quadro que pretendia pintar, nas proximidades do Horto Florestal de Campos do Jordão, lá no meio do campo e do mato, longe do local onde havia deixado o automóvel, começaram a cair fortes pingos de chuva. Esses pingos de chuva, certamente, iriam acabar comprometendo o esboço do seu novo quadro. Desmontou rapidamente o cavalete e guardou pincéis, tintas e todos os seus apetrechos de pintura. Colocou o quadro já esboçado embaixo do braço tentando protegê-lo dos pingos da chuva e começou a andar rapidamente à procura de algum abrigo seguro. A pouca distância do local, avistou uma casinha de taipa ou pau-a-pique e rumou para lá. Em lá chegando, bateu palmas, e um caboclo abriu a porta para atendê-lo. O professor lhe explicou o que fazia por aquelas bandas e perguntou se poderia deixar aquele quadro esboçado guardado em sua casa, evitando perder o que já havia feito e que, dentro de alguns dias, voltaria para pegá-lo. O caboclo consentiu. Guardado o quadro, o professor foi embora. Sua previsão para retornar dentro de poucos dias infelizmente não se concretizou, como imaginou. Somente conseguiu retornar ao local quase um mês após.
Depois de conversar novamente com o caboclo e colocar as mãos em seu quadro esboçado, ficou surpreso e até aborrecido quando viu que o quadro apresentava um buraco na parte superior e bem no centro. Sua surpresa e curiosidade giravam em torno de como foi feito aquele buraco no quadro e qual a razão daquilo. Não se conteve e perguntou ao caboclo: “Desculpa. Como foi que aconteceu esse furo aqui no quadro?” Ao que o caboclo rapidamente respondeu: “Senhor, aqui em minha casa aparecem muitos ratos. Fiquei com medo que algum deles começasse a roer o seu quadro. Aí então peguei o quadro e pendurei ali naquele prego, bem no alto, evitando que os ratos chegassem nele”. Estava explicada a infeliz e justificada causa do furo do quadro.
Concluindo a história: o professor Camargo Freire fez um pequeno remendo, cobriu o buraco do quadro, pintou por cima dele, e pronto o quadro, vendeu-o normalmente, apenas contando ao adquirente, com muita propriedade, do jeito que só ele sabia contar, o motivo daquele pequeno defeito que, até certo ponto, valorizou o seu trabalho. O cliente acabou levando o quadro e, de quebra, uma história interessante sobre ele.
PIQUENIQUES ESPECIAIS DO PROFESSOR CAMARGO FREIRE
Já sabia, de longa data, que o professor Camargo Freire era um grande admirador da culinária universal, mas esta, para mim, foi surpreendente.
Numa conversa recente com amigos de longa data, Dr. Marcos Wulf Siegel e sua esposa D. Sylvia, antigos moradores de Campos do Jordão, que residem, atualmente, em São José dos Campos - SP, fiquei sabendo desta interessante história sobre o professor Camargo Freire.
Contaram que, em muitas oportunidades, saíam aos domingos com o professor Camargo Freire as famílias e amigos para fazerem piqueniques em vários locais tranqüilos e maravilhosos dos Campos do Jordão de outrora. Cada qual levava suas próprias refeições ou as preparava no próprio local, que, via de regra, eram trocadas entre eles, possibilitando cada um experimentar as habilidades culinárias dos outros.
Nessas oportunidades, o professor Camargo aproveitava também para esboçar alguma paisagem para um novo quadro.
Em determinado final de semana, foram acampar nas proximidades do Pico do Itapeva e se surpreenderam com o cardápio do piquenique preparado pelo professor que, como na maioria das vezes, insistia em ser o cozinheiro principal, o que agradava a todos. Sem dúvida, era um grande mestre do fogão. O seu cardápio, nessa oportunidade, era composto de vários pratos feitos exclusiva e habilmente com carne de coelho. Claro, todos que lá estavam não perderam a oportunidade de experimentar e saborear essas magníficas raridades. O professor Camargo Freire era não só um apreciador da boa culinária, mas também dava suas experientes e sábias pinceladas nas panelas ao fogão.
Com relação aos pratos feitos à base de carne de coelho, informaram que ele, na época, tinha no quintal de sua casa uma pequena criação de coelhos, a princípio, com finalidade ornamental, porém como esses animais procriam rápida e demasiadamente, era obrigado, periodicamente, a fazer o desbaste de alguns exemplares, com a finalidade de manter o equilíbrio da criação, oportunidade que aproveitava para colocar à prova suas habilidades culinárias.
BONS E ANIMADOS PAPOS DAS SEXTAS-FEIRAS
Durante vários anos, rotineiramente, me encontrava com o professor Camargo Freire, no final das tardes das sextas-feiras, no nosso Mercado Municipal de Campos do Jordão, na tradicional banca de frutas, legumes e verduras dos Irmãos Akamine (Choje, Shosei e Chiquinho). Tanto ele como eu íamos fazer nossas compras semanais para o suprimento de nossas casas.
Nessas oportunidades, ficávamos por um bom tempo colocando as notícias em dia, aproveitando para falar um pouco de culinária e sobre algumas receitas para o aproveitamento de alguns legumes e verduras que estávamos comprando, associando-as a alguns tipos de carne etc.
Lembro-me que ele sempre falava que nos diversos pratos em que adicionamos o pimentão, com certeza, deve ser a receita de algum prato de origem espanhola. “Os espanhóis gostam muito de pimenta e pimentão. Eles têm muito bom gosto, realmente muitos pratos ficam muito mais saborosos se acrescentarmos esse legume.”
Em várias oportunidades combinamos de nos encontrar em minha casa ou na casa dele para testarmos nossas habilidades culinárias; porém, infelizmente, esses encontros não aconteceram, ora por indisponibilidade minha, devido a diversos compromissos profissionais, ora dele, também pelos mesmos motivos, compromissos de exposições e de visitas a locais em que pretendia esboçar a imagem de suas novas telas.
Também, em uma infinidade de vezes falei ao mestre Camargo: “Professor, gostaria muito de poder adquirir um de seus quadros maravilhosos, porém acho que não tenho dinheiro para tanto”. Ele, em todas essa oportunidades me dizia: “Vá até meu atelier, escolha um dos quadros e depois a gente conversa”. Infelizmente, devido aos mesmos problemas anteriormente relatados, da falta de tempo de ambas as partes, essa oportunidade foi sendo protelada. Posteriormente, o professor Camargo começou a apresentar alguns problemas com sua saúde e a oportunidade foi, cada dia, se distanciando ainda mais. Na preocupação de não incomodá-lo e atrapalhar seu sossego, o momento necessário acabou não acontecendo e eu, infelizmente, fiquei sem adquirir um dos quadros do mestre Camargo Freire, situação que lamento durante toda minha vida, porém sem perder a esperança de, algum dia, ainda conseguir uma de suas obras, mesmo através da revenda de algum colecionador.
Edmundo Ferreira da Rocha
20/05/2008
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