Como Camargo Freire veio parar em Campos do Jordão
O pintor Camargo Freire em foto da década de 1940
Conforme relatos do próprio Expedito Camargo Freire a vários e dedicados amigos, angariados durante toda a sua vida nestes Campos do Jordão, entre os quais o José Corrêa, mais conhecido como Juca do Mercado, e sua esposa, professora Zilda, que durante muitos anos foram seus visinhos, na Vila Guarani, proximidades do antigo e saudoso Círculo Operário de Campos do Jordão, rolava o início da década de quarenta, e o nosso futuro professor e mestre da Pintura, Camargo Freire, morava na Cidade do Rio de Janeiro e estudava pintura, inscrevendo-se sob o nº 50 em 05 de março de 1937, na Sociedade Propagadora das Belas Artes, Liceu de Artes e Ofícios, fundado em 23 de novembro de 1856 pelo Arquiteto Bethencourt da Silva, hoje Escola Nacional de Belas Artes.
Em determinado momento dessa fase, após diversos contratempos e sintomas estranhos que começaram a comprometer a sua saúde, após exames preliminares utilizados naquela época, foi constatado que Camargo Freire havia contraído a tuberculose, doença grave causada pelo “Mycobacterium tuberculosis” que, usualmente, atinge os pulmões, causando a tuberculose pulmonar, o mal do século vinte.
O médico que assistia Camargo Freire foi radical e disse-lhe: “Ou você dá um jeito de ir imediatamente para a Cidade de Campos do Jordão, no Estado de São Paulo, onde o clima privilegiado e especial é uma forte esperança em qualquer que seja o tratamento empregado contra a tuberculose, visando à obtenção de uma cura, até definitiva ou, ficando aqui no Rio de Janeiro, não posso assegurar quanto tempo de vida poderá ter”.
Nesse momento, além da terrível doença contraída, Camargo Freire levava mais um grande golpe em sua vida. Sua precaríssima situação financeira não lhe dava condições nem para comprar as passagens necessárias para a longa viagem rumo aos Campos do Jordão. Estava, como costumamos dizer, entre a cruz e a espada. Se fosse para Campos do Jordão, poderia vislumbrar uma esperança para a cura da terrível doença. Se ficasse no Rio de Janeiro, não sabia quanto tempo de vida teria. Mas como poderia vir para a Cidade Esperança?
Pintou vários quadrinhos e tentou vender, na esperança de conseguir, ao menos, o dinheiro das passagens. Tudo em vão. Ninguém queria comprar os seus quadrinhos (mal sabiam que ele, pouco tempo depois, iria se tornar um expoente da pintura jordanense).
Alguns amigos que com ele conviviam no Rio de Janeiro e dividiam o infortúnio daquele início de suas vidas, sensibilizados e preocupados com o destino do companheiro, com muita dificuldade, através de muito sacrifício e até de privações pessoais, conseguiram arrecadar o dinheiro necessário para a compra das passagens, uma pequena sobra para alguma despesa de emergência e mínima alimentação e o ajudaram iniciar a grande viagem de sua vida em busca da tentativa da cura para o mal contraído.
De trem da Estrada de Ferro Central do Brasil fez a primeira etapa da longa e esperada viagem, do Rio de Janeiro até a cidade de Pindamonhangaba. Desta, por intermédio de um dos bondes da Estrada de Ferro Campos do Jordão fez a segunda parte da viagem da esperança.
Chegando em Campos do Jordão, devido ao seu estreito relacionamento com as igrejas Presbiteriana e Metodista do Brasil, cuja associação da primeira era a mantenedora do Sanatório Ebenezer de Campos do Jordão, nosocômio especializado para o tratamento da tuberculose, sediado em prédio próprio, localizado no bairro Umuarama, atualmente sede da Colônia de Férias “Acampamento dos Pumas”, conseguiu uma vaga e lá ficou internado à espera de melhores dias.
Seguindo à risca o tratamento recomendado pelos médicos da época – medicamentos, refeições, repouso diurno e noturno, cuidados especiais, rigorosamente nos horários pré-estabelecidos –, dentro de pouco tempo começou a sentir alguma melhora em seu estado de saúde.
Sem dúvida, o clima de ar puro, extremamente oxigenado, impregnado de partículas de suas essências naturais, como o pinheiro “araucária angustifólia”, o pinho bravo e outras espécies de igual importância, foi altamente benéfico ao tratamento a que Camargo Freire foi submetido.
Como caboclo brasileiro, altamente crente em todas as propriedades terapêuticas de nossa rica e variada flora, pelos próprios conhecimentos adquiridos por meio da leitura de vários artigos sobre o assunto, e, também, pela insistência e recomendação de amigos com quem conviveu durante a sua internação no Sanatório Ebenezer, começou um tratamento adicional e alternativo que, sem dúvida, também ajudou muito. Passou a consumir, regularmente, muito alho “allium sativum”, planta da família das liláceas, cujo bulbo é altamente utilizado na culinária e, comprovadamente, tem propriedades peculiares que favorecem a limpeza e o vigor de nosso sistema pulmonar e benéfico aos brônquios.
Durante todas as suas caminhadas regulares e obrigatórias, na liberdade de nossos campos do Jordão, na tranqüilidade dos montes deste rincão paulista, abençoado por Deus, Camargo Freire, em busca dos melhores ângulos de nossas lindas paisagens jordanenses, para eternizá-las em suas maravilhosas telas, por intermédio da sua pintura especial e inconfundível, levava nos bolsos de seu paletó ou do jaleco que utilizava para proteger a sua roupa preciosa, controlada e reduzida, da ação das tintas e materiais afins, vários dentes de alho que, aos poucos, iam sendo mastigados e comidos.
É importante registrar que o tratamento ao qual o nosso Camargo Freire se submeteu, contra a doença contraída, foi bastante rudimentar; com os poucos recursos da medicina da época, foi, sem dúvida alguma, o clima privilegiado e puro destas altitudes da Mantiqueira de fundamental importância, associado ao hábito adquirido com a utilização do alho “in-natura”.
Somente a partir da década de 60, com os avanços da Medicina e o surgimento da hidrazida, o tratamento da tuberculose começou a ter novos rumos e controle.
Lembrou o Juca Corrêa que, na década de 40, quando trabalhava de ajudante de marceneiro do Sr. Manoel Corrêa, um português que comandava a Marcenaria da Incos de Vila Jaguaribe, casa especializada, voltada exclusivamente para a construção civil da cidade, com vendas de materiais diversos, atendeu várias vezes Camargo Freire que lá ia, embora muito abatido fisicamente, encomendar diversos quadrinhos de madeira, devidamente emoldurados, que seriam utilizados para receber as pinturas especiais das paisagens de Campos do Jordão.
Quando esses quadrinhos, em medidas variadas de 20 x 30 cm, 30x40 cm, ou outras medidas especiais, ficavam prontos, lá ia o Juca Corrêa, que na época era um garotão, a pé ou de bicicleta, levá-los no bairro Umuarama, no Sanatório Ebenezer, onde Camargo Freire estava internado. Sempre que fazia a entrega, Camargo Freire, que não podia recompensá-lo com algum trocado, devido à sua condição financeira nada recomendável, nunca deixou de gratificá-lo com alguma fruta que porventura tivesse guardado para o seu regime alimentar.
Com esse verdadeiro ritual seguido rigorosamente, com humor altamente benéfico, cativante, invejável, com muita esperança e muita determinação, Camargo Freire conseguiu, até que rapidamente, se livrar da danada da tuberculose, vindo a receber a tão esperada e sonhada alta hospitalar.
Camargo Freire, nestes Campos do Jordão, foi premiado com a cura da doença da época. O clima privilegiado e maravilhoso, sem dúvida, teve papel preponderante e benéfico no tratamento a que foi submetido.
Foi assim que Camargo Freire veio parar em Campos do Jordão. Digo parar no sentido estrito de aportar, de chegar, pois Camargo Freire nunca parou, e sim iniciou e se dedicou de corpo e alma, na cidade que o acolheu de braços abertos, à sua brilhante trajetória e carreira de professor de Desenho e artista plástico de renome nacional e internacional. Para nossa felicidade, talvez como gratidão a essa graça e acolhida recebida, Camargo Freire jamais deixou Campos do Jordão. Nela permaneceu, como muitos outros, que em situação semelhante, na busca da cura da tuberculose, para esta cidade vieram e, após a cura almejada, nela se radicaram, constituíram suas famílias, integraram-se em à sociedade, ocupando os mais variados e importantes cargos empresariais, comerciais, industriais, públicos, sociais, beneméritos, filantrópicos; e alicerçando com bases altamente sólidas o nosso progresso, fizeram parte de nossa história.
Camargo Freire tornou-se professor depois de prestar Concurso de Títulos e Provas para a Cadeira de Desenho, recebendo o Certificado de nº D-1553 de 27.12.1946. Posteriormente, recebeu do Ensino Secundário e Normal da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, o Certificado de Registro de Professor Secundário de Ensino Normal, de nº 4341 de 21.10.1960, para a disciplina de Desenho Pedagógico. Além de se tornar o mais ilustre professor das cadeiras de Desenho e Desenho Pedagógico, do saudoso Colégio e Escola Normal Estadual de Campos do Jordão – C.E.E.N.E., onde lecionou durante toda a sua vida profissional, foi um artista plástico que se destacou na pintura, registrando fatos e motivos importantes da Cidade e Região, se destacou em salões de artes plásticas de nível internacional, sendo agraciado com prêmios altamente importantes, entre os quais aquele que o premiou com viagem de estudo em Paris no ano de 1958.
Edmundo Ferreira da Rocha
01/05/2007
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