O "último" Papai Noel - O.M.Donato
Imagem ilustrativa : "ultimo" Papai Noel
Naquela véspera de Natal, nos idos dos anos de 1928, no vetusto sobrado da rua Aurora, como em todos os anos nesta época, a alegria das pessoas apossava-se do ambiente, integrando-se na velha casa. Em atividade incessante, todos ultimavam as decorações natalinas a dar aspecto mais festivo: as bolas coloridas, os galhos, de cedrinho, a árvore de Natal. Arrumavam-se os galhos da árvore, ajeitavam-se as velinhas, um toque aqui, outro toque ali. Eu e o mano, embevecidos, ficávamos extasiados com esses preparativos de festa e acompanhávamos todos os movimentos dos adultos, querendo ajudar, principalmente a arrumar o presepe, com suas lindas figuras de barro e a mesa “para Papai Noel”... Frutas secas, panetone, garrafa de vinho, o prato, os talheres, o copo, para que o simpático velhinho retemperasse suas energias, numa breve pausa, quando viesse trazer os presentes...
A tardinha, depois da sesta, mamãe nos levava a passear no centro da cidade, para espiar as vitrinas, repletas de brinquedos. Para nós, tinham especial encanto aquelas do Bazar São João e da Casa São Nicolau, onde demorávamos mais tempo, para decidir o que queríamos... À medida que a noite se aproximava, a alegria e a expectativa faziam-se mais intensas... Espiávamos pelas janelas, saíamos na sacada. Passavam transeuntes apressados, sobraçando pacotes multicoloridos. O acendedor de lampiões de gás, acabava de acender o que ficava em frente de casa e prosseguia na sua tarefa... Estava mais escuro que o normal. Começava a soprar um vento forte. Ameaçava temporal. Não demorou e despencava uma chuva torrencial. Os relâmpagos repetiam-se a intervalos cada vez mais curtos. O trovão ribombava. Desabara o temporal violento, São Pedro resolvera mandar os querubins a fazer uma limpeza geral nos seus domínios, lá no alto, e, sem dúvida, com bastante água!... E os anjinhos, atarefados, arrastavam os móveis, enquanto os mais gaiatos jogavam bocha...
A enxurrada engrossava nas sarjetas. A rua Sta. Ifigênia parecia caudaloso rio. Era bonito ver os bondes passando e esguichando água, os outros veículos também.
A chuva só amainou tarde da noite.
Depois da ceia tradicional fomos deitar. Custamos a conciliar o sono. A excitação era indescritível.
Mal amanhecera o dia do Natal, despertamos como que automaticamente. Radiantes, corremos para a sala, em direção à árvore de Natal. Olhamos por todos os lados, estupefatos, e nada de pacotes... A mesa posta para Papai Noel, estava como na véspera. O prato, os talheres, o copo, tudo limpo! Apenas na cozinha, lá estavam as características meias recheadas, sobre o fogão... Papai e mamãe haviam-se acercado de nós, atraídos pela nossa correria. Mamãe nos explicava como podia: Papai Noel não viera por causa do violento temporal. As renas não podiam correr debaixo do copioso aguaceiro. De mais a mais o trenó não era coberto e todos os brinquedos ficaram molhados, estragando-se os mais delicados!
Comecei a chorar desesperadamente, o mano secundou-me de imediato.
A enxurrada, agora, era de lágrimas. Enquanto isso, papai e mamãe desdobravam-se para dizer-nos que não precisávamos ficar tristes, porque souberam que o Papai Noel havia deixado os brinquedos no centro da cidade e que mamãe iria buscá-los. Era só ter um pouquinho de paciência!
Enquanto mamãe saia, beijando-nos, voltava a alegria em nosso íntimo e começávamos a abrir as compridas meias: eram bombons, soldadinhos de chumbo, nozes, amêndoas, carrinhos, balas...
Pouco depois chegavam os presentes que havíamos pedido ao bom velhinho.
O trenzinho de corda alemão; as varetas e as rodinhas “TrinkToy” para armar, com os mais variados desenhos; os livretos de histórias; os cadernos para colorir; a bola em gomos de cores vivas, um mundo de coisas!
Divertimo-nos a valer, um pouco com cada brinquedo. Fomos almoçar na presença dos soldadinhos de chumbo, postados à frente dos nossos pratos, ansiosos para voltar ao trenzinho de corda e aos outros brinquedos que nos esperavam na sala.
Mais um Natal feliz para nós – os dois guris do velho sobrado da rua Aurora!
Entretanto, eu não podia conformar-me com o fato de Papai Noel não ter vindo na véspera. Acaso a “limpeza de São Pedro” seria motivo bastante para impedir o livre trânsito do simpático velhinho, pelas imensas vias do céu?
Troquei idéias com o mano. Parlamentamos. As razões não eram, mesmo, convincentes. Não. Não era possível. Só havia, portanto, uma saída: duvidar da existência de Papai Noel. Era uma tristeza admiti-lo, mas, de fato, não víamos mesmo outra saída!
Desde esse dia 25 de dezembro de 1928, duas crianças amarguradas deixaram de acreditar no bom velhinho, mas ninguém soube disso, nem seus pais, a não ser alguns anos mais tarde.
Todavia, para eles, aquele de 28, fora o último Papai Noel!
Jornal A Cidade de Campos do Jordão, 26 de dezembro de 1965.
25/12/1948
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