O enfermeiro Otto, um anjo vestido de branco.
Na foto, nas dependências do Sanatório Sírio, da esquerda para a direita os enfermeiros : Francisco Casemiro, não identificado, Erwin Josef Ott, o conhecido OTTO e José Jair Diniz..
Erwin Josef Ott, mais conhecido como Otto (Berlim – Alemanha Ocidental, 14/05/1912 / Campos do Jordão-SP. – Brasil, 30/12/1979). Na década de 1940, trabalhando em um navio que vinha com destino ao Brasil, aproveitou e fugiu da 2ª Guerra Mundial (01/setembro/1939 a 02/setembro/1945). Era filho de Josef Ott e Luise Ott. Era um homem alto, acredito com 1,85 de altura, esguio, elegante, que residiu em Campos do Jordão por volta da década de 1940 até final da década de 1970. Nessa época naturalizou-se brasileiro. Foi casado com a Sra. Neusa Expedita de Jesus Ott, com quem teve os filhos Marcos e Márcia Helena, já falecida. Residiu por muitos anos no Bairro do Britador, local que amava, onde era querido e respeitado pelos moradores, especialmente, pelos relevantes serviços prestados à comunidade.
Ao que tudo nos indica, como muitos, também veio para Campos do Jordão em busca da cura para a tuberculose e aqui acabou ficando. Há quem diga que aqui chegou buscando a cura do tifo contraído durante a viagem.
Não posso afirmar se, quando veio para Campos do Jordão, já havia desempenhado serviços na área da enfermagem ou se foi aqui, nos ambientes dos diversos sanatórios e hospitais, especializados em tuberculose, especialmente junto ao Sanatório Sírio onde, segundo informações, teria trabalhado nessa área. Também há quem diga que, com muito esforço e dedicação, formou-se como enfermeiro padrão. Com certeza, se procedentes estas informações, foi muito bem orientado pelos excelentes médicos que clinicavam e operavam na área da tísica pulmonar, boa razão para seu aprimorado aprendizado. Seja qual for o ensinamento que recebeu, para adquirir conhecimentos sobre a área da enfermagem, com certeza, foram sábios ensinamentos que lhe conferiram grande capacidade profissional nessa importante área.
Era uma pessoa de boa cultura, sério, altamente responsável, tendo se destacado pelo seu caráter, pela sua bondade e profissionalismo. Aqui em Campos do Jordão, durante todo o tempo em que aqui residiu, dedicou-se ao importante e necessário serviço de enfermagem ambulante. Sim, realmente, o serviço que prestava nessa área era um serviço ambulante.
Poucas farmácias existiam nessa época em Campos do Jordão. Algumas contavam com serviços de excelentes profissionais que, habilmente, aplicavam injeções, faziam curativos e até receitavam, acertadamente, remédios para o tratamento de diversas enfermidades mais comuns.
Muitas pessoas acometidas de diversos tipos de enfermidades, inclusive idosos ou com sério comprometimento das atividades locomotoras – que diariamente necessitavam de aplicações de injeções diversas, em muitos casos, até mais de uma vez por dia, não tendo condições de se locomoverem de suas casas até a farmácia mais próxima –, contavam com o precioso e importante serviço prestado pelo anjo enfermeiro Otto. Era quase um médico.
Otto era um exímio profissional. Sempre trajava sobre a roupa comum o seu tradicional e impecável guarda-pó longo e branco. Nunca deixava de usar sua tradicional boina azul-marinho, protegendo a cabeça das intempéries, especialmente o frio. Aplicava, divinamente, injeções diversas, musculares ou intravenosas. Fazia com muita habilidade diversos tipos de curativos. Na época em que aqui residiu, eram inúmeras as pessoas que sempre recorriam aos serviços do conhecido enfermeiro Otto, a única pessoa em Campos do Jordão que prestava esse serviço em domicílio. Diversos e famosos médicos que prestaram valorosos serviços profissionais, em consultórios, sanatórios e hospitais da cidade, na histórica fase da tuberculose, sempre recomendavam seu excelente serviço.
O conhecido José João de Andrade (Silva), da tradicional e histórica Farmácia Santo Antonio, de Campos do Jordão, trabalhando nesse ramo e na mesma Farmácia desde o ano de 1957, já tendo aplicado muito mais de um milhão e meio de injeções, me confidenciou, há algum tempo, que aprendeu aplicar injeções com o Otto Enfermeiro.
Normalmente, andava a pé por toda a cidade. Sempre que podia, locomovia-se até as principais vilas da cidade, utilizando-se dos serviços dos bondes de carreira da Estrada de Ferro Campos do Jordão. Por muitos anos, até início da década de 1960, não existiam os chamados bondinhos subúrbios, os simpáticos bondinhos apelidados de camarões. Utilizava, então, os serviços prestados pelos bondes que faziam, regularmente, diversos horários de viagens entre Campos do Jordão e Pindamonhangaba, aceitando passageiros extras, nos percursos compreendidos entre a Estação Emílio Ribas, de Vila Capivari até a Parada São Cristóvão. Também utilizava os serviços prestados pelos ônibus circulares da tradicional Empresa de Ônibus Hotel dos Lagos, responsável pelo transporte coletivo que atendia diversas vilas da cidade. Ainda, em muitas oportunidades, era agraciado com algumas caronas oferecidas por pessoas amigas e conhecidas, muitas das quais já haviam necessitado dos seus serviços profissionais. Até motoristas de praça, hoje chamados de taxistas, indo buscar passageiros ou retornando de alguma corrida, davam carona ao conhecido amigo e enfermeiro Otto.
Sempre trazia na mão a sua pequena valise profissional. Na valise, diversos tipos de materiais necessários para curativos, entre eles: esparadrapos, gazes, álcool, mercúrio cromo, iodo e alguns tipos de pomadas. Nunca faltavam as pequenas embalagens de aço inoxidável onde transportava diversos tipos de seringas de vidro temperado, de várias capacidades, e as agulhas permanentes de diversas medidas. Antes de aplicar qualquer tipo de injeção, colocava as seringas e agulhas dentro de uma das embalagens de aço inoxidável cheia de água. Sobre outro recipiente com álcool, depois de atear fogo, colocava a embalagem com água, seringas e agulhas e deixava a água ferver por alguns minutos, visando à esterilização do material. Depois disso, ia utilizando nos seus serviços.
Era um verdadeiro ritual desempenhado pelo enfermeiro Otto para atender seus inúmeros pacientes. Acredito que lia muito sobre esse ramo profissional ao qual se dedicava e, com isso, ia se aperfeiçoando cada vez mais.
Muitas pessoas com diversos tipos de ferimentos – recém-operados, pessoas acometidas de diversos tipos de feridas, especialmente causadas por diabetes ou escaras de contato, adquiridas por longo período de cama –, se valiam dos valorosos curativos aplicados pelo enfermeiro Otto.
Tendo cuidado da saúde de inúmeras pessoas, inclusive, personalidades que residiram em Campos do Jordão, angariava o seu sustento. Atendia também, grande número de pessoas sem recursos financeiros, sem cobrar um centavo sequer. Para estes, até fazia doações de remédios e injeções, cumprindo seu juramento de enfermeiro, atendendo a todos, sem distinção financeira, religião ou raça.
No Brasil, somente após nossa participação na Segunda Guerra Mundial, a fisioterapia passou a ser utilizada para a recuperação das sequelas físicas.
No ano de 1951, foi realizado o primeiro curso para formação de técnicos em fisioterapia pela Universidade de São Paulo. Em 1963, a fisioterapia se tornou curso superior, porém a atuação dos fisioterapeutas estava subordinada aos médicos. Somente em 1969, com o Decreto-Lei 938, de 13 de outubro, as profissões de fisioterapia e terapia ocupacional foram regulamentadas.
Nas décadas de 1950 e 1960, praticamente, não se ouvia falar em fisioterapia, ramo da ciência aplicada à prevenção e tratamento da saúde por meio de recursos físicos, que, aliás, somente começou a ser mais utilizada a partir de 1969. Anteriormente, serviços dessa área somente eram realizados por médicos denominados “médicos de reabilitação”.
É incrível, mas a pura realidade. Acredito que o enfermeiro Otto, anteriormente, por meio de aprendizado e conhecimentos adquiridos por intermédio de estudos e leituras diversas, já se utilizava de diversos recursos da biomecânica e funcionalidade humana, para tratamento de diversos distúrbios de alterações de órgãos e sistemas humanos. Por meio de massagens localizadas e de diversos tipos de exercícios físicos especiais de movimentação corporal, direcionados sobre o organismo humano, conseguia sucesso e, como diziam, fazia milagres.
Lembro-me do caso do saudoso Benedito Olimpio Miranda, antigo e conhecido comerciante residente em Vila Capivari, patriarca de numerosa família – fui amigo de alguns de seus filhos e netos –, que havia sido acometido, como diziam na época, de derrame cerebral, hoje mais conhecido como AVC – acidente vascular cerebral. Devido ao terrível derrame, seu Miranda teve membros afetados, ficando um bom tempo completamente imobilizado e sem sair da cama, dependendo de tudo e de todos.
A família contratou o enfermeiro Otto para, diariamente, aplicar as injeções necessárias e ministrar os medicamentos de acordo com orientação médica.
Por meio da vaga lembrança que tenho deste caso, acredito, o enfermeiro Otto, penalizado com a situação lamentável em que se encontrava seu paciente, além dos serviços para o qual já havia sido contratado, começou a aplicar-lhe diversos tipos de massagens nos braços e nas pernas, seguidos de exercícios que forçavam a movimentação desses membros já bastante comprometidos.
Depois de algum tempo de incessante, contínua e bem aplicada série de massagens e exercícios diversos, competentemente aplicados, o enfermeiro Otto conseguiu tirar seu Miranda da cama. Continuando por mais algum tempo com outros tipos de exercícios, já conseguia ficar em pé e andava com o acompanhamento e auxílio de seu prestimoso enfermeiro.
Resumindo: os conhecimentos de fisioterapia, ainda elementares, adquiridos pelo enfermeiro Otto, conseguiram, milagrosamente, como dizíamos, que o seu Miranda voltasse a se locomover sozinho, inclusive, sem auxílio de bengala. Claro, ficou com o braço esquerdo quase paralisado e a perna esquerda movia-se com certa dificuldade. Todo esse trabalho bem aplicado restabeleceu parcialmente a atividade locomotora do seu Miranda, que conseguia utilizar-se dos serviços do bondinho ou do ônibus circular e vir, especialmente aos sábados, à feira de Vila Abernéssia, como cheguei a vê-lo e encontrá-lo em diversas oportunidades.
Como seu Miranda, que ficou com atividades motoras muito comprometidas por causa do derrame cerebral, outros inúmeros pacientes acometidos do mesmo mal ou, também, por motivo de acidentes diversos, se beneficiaram do maravilhoso, cuidadoso, eficiente e perseverante trabalho do enfermeiro Otto.
Para finalizar, uma pequena história, até hilariante, acontecida no final da década de 1960, quando dei uma carona ao saudoso amigo e enfermeiro Otto.
Naquela época, eu morava em Vila Capivari e trabalhava em Vila Abernéssia, no Posto Fiscal do Estado, da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo. Quando me dirigia ao trabalho, por volta das sete horas e trinta minutos, no meu “fusquinha” 1968, praticamente novinho, pouco adiante do centro da Vila Jaguaribe encontrei o enfermeiro Otto que retornava a pé de Vila Capivari, depois de uma de suas muitas noitadas acompanhando o paciente seu Miranda.
Naquela época nem todos os veículos tinham bancos com encostos reclináveis. Meu saudoso amigo Dirceu José Faria Prata, bastante ligado nas modernidades automotivas, havia me convencido a comprar equipamento que ele mesmo trouxe de São Paulo que, adaptado nos bancos dianteiros do veículo, possibilitava que os encostos viessem a ficar reclinados, até completamente. Não era um equipamento muito confiável. Em algumas oportunidades, a trava que segurava o encosto soltava e este reclinava totalmente para trás.
Voltando à carona para o enfermeiro Otto, naquela oportunidade, o dia estava com uma garoa incessante, até bastante acentuada. Parei o carro, abri o vidro, cumprimentei e perguntei: “Seu Otto, quer aproveitar a condução até Vila Abernéssia?” Ele já um pouco molhado e, com certeza, cansado da noite anterior, aceitou de imediato.
O encosto do banco do carro não estava reclinado. Estava na posição normal. Abri a porta do carro para ele entrar. Como ele era bastante grande e alto como eu, para entrar num fusquinha não era muito fácil. Mas entrou, sentou-se, colocou sua valise no colo e fechou a porta. Quando dei a arrancada não deu outra, o encosto do banco despencou para trás e lá se foi o seu Otto de costas sobre o banco traseiro, com as pernas para o ar e a valise caindo sobre sua cabeça. Eu quase morri de vontade de rir, porém, em respeito ao querido e estimado amigo a quem sempre tratei com muito respeito e seriedade, parei imediatamente o carro, pedi desculpas e expliquei o motivo do acontecido. Acertei o encosto e o amigo se reposicionou no banco. O restante da viagem correu tranquilamente, embora a garoa, aumentado significativamente. Como paga pelo vexame pelo qual fiz seu Otto passar, levei-o até mais próximo da sua casa, que ficava nas proximidades da conhecida Parada Viola, da Estrada de Ferro Campos do Jordão.
Saudades do enfermeiro Otto. Mesmo com as modernidades da atualidade, com grande aumento de profissionais nas áreas da enfermagem e fisioterapia, com certeza, profissional da sua estirpe, com sua capacidade, ainda seria muito útil para diversas pessoas nos dias atuais.
Edmundo Ferreira da Rocha
13/03/2012
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