Piau e Antenorzão - O tombo do gigante
Antenor Alves e João Moysés, sempre grandes amigos .
Este relato é uma das muitas histórias inesquecíveis que demonstram a simplicidade de épocas passadas. Ele faz parte dos fatos reais, trágicos, engraçados, enfim, acontecimentos, que não registrados, com certeza, dentro de pouco tempo, cairão no esquecimento e jamais passarão a fazer parte da história cotidiana da cidade.
Início da década de sessenta.
Bem no centrinho de Vila Capivari existia o tradicional Bar São Luiz, localizado ao lado da Farmácia Emílio Ribas, de propriedade do grande amigo José Elias, o conhecido Calil, estabelecimento ainda em plena atividade e sob o comando de seus familiares.
Naquela oportunidade, esse bar era propriedade do Sr. José de Almeida e da Dona Laura Benvinda dos Reis, sobrinho e tia, ambos de nacionalidade portuguesa, pessoas que muito contribuíram para o comércio de nossa cidade. Era um bar simples que vendia bebidas em geral, salgadinhos e sanduíches, mantendo em seu interior duas mesas de “snooker”, concorridíssimas para a época. Em frente a esse bar existia um ponto de ônibus da Empresa Hotel dos Lagos, concessionária dos serviços de transportes urbanos da cidade. Era o ponto inicial da linha circular que interligava as vilas Capivari/Abernéssia/Vila Albertina/Vila Santa Cruz e Vila Ferraz.
Lá por volta das nove da noite encontravam-se em frente a esse bar o Sr. João Moysés, mais conhecido secretamente por Piranguçu (cidade do Sul de Minas Gerais, situada nas proximidades de Itajubá, onde deve ter nascido) ou Piau (ficava furioso se alguém o chamasse por um desses apelidos) e o Sr. Antenor Alves, conhecido como Antenor do Ó ou Antenorzão. Ambos, pessoas maravilhosas, queridas, dignas, trabalhadoras, alicerce de famílias sólidas, que muito contribuíram e ainda contribuem para o sucesso de nossa cidade. Pais de grandes amigos de infância, juventude e, agora, terceira idade, que muito valorizaram e incentivaram inúmeras atividades esportivas em Campos do Jordão.
O Piau, de saudosa memória, me perdoe a audácia de identificá-lo dessa forma, porém fica mais fácil para, a seguir, relatar o histórico de nosso título inicial, era um homem de estatura e físico normal. Ele e sua saudosa esposa, a nossa querida Dona Cândida ou Dona Candinha, de nacionalidade lusitana, foram, por várias décadas, os principais responsáveis pela administração e manutenção de uma tradicional e linda propriedade pertencente a Mister William Sebastian Harlet, situada em Vila Capivari, denominada “Ninho de Flora”, hoje pertencente à Associação dos Funcionários Públicos do Estado de São Paulo. Ele mantinha os jardins dessa propriedade de forma impecável, constantemente floridos, com cercas vivas e gramados cuidadosamente podados e aparados, dignos de muitos e merecidos elogios. Era um jardineiro exemplar e habilidoso, conhecedor de sua profissão e arte.
Antenor do Ó ou Antenorzão, homem de estatura até privilegiada, de físico vistoso, tinha braços muito fortes devido ao trabalho que desempenhou, durante muitas décadas, como carroceiro de sua carroça de aluguel. Fazia carretos diversos, principalmente dos materiais de construção que vinham das casas especializadas do Vale do Paraíba, por gôndolas ou pranchas da Estrada de Ferro Campos do Jordão e ficavam em seu depósito de Vila Capivari. Normalmente o Antenor, que já mantinha acordos com vários empreiteiros e responsáveis pela construção civil de nossa cidade, ia ao depósito da Estrada de Ferro, carregava sua carroça com os diversos materiais de construção e ia entregá-los em cada uma das respectivas obras para as quais se destinavam. Além desse serviço de rotina, transportava tijolos, areia, pedra, lenha... enfim, toda gama de carga rústica e pesada dos diversos locais onde eram vendidos até os locais de destino designados por seus compradores. Devido a esse trabalho rústico, seus músculos foram se desenvolvendo e fortaleceram seu físico e, especialmente, seus braços. Posteriormente, quando parou com esse tipo de serviço, devido ao peso da idade, passou a trabalhar, também, como jardineiro, tornando-se um profissional muito procurado e disputado para esse trabalho, especialmente pelos turistas que mantinham aqui na cidade suas casas de temporadas de férias.
Durante todo o tempo em que Antenor desempenhou essas atividades, sempre prestou um trabalho digno do reconhecimento de todos que tiveram o privilégio de conhecê-lo. Era um dos mais procurados doadores de sangue de nossa cidade. Chegou a receber um título, outorgado pela Câmara Municipal, de cidadão benemérito da causa pública. Durante toda a sua vida chegou a doar, aproximadamente, setenta e cinco litros de sangue. Sobre esse aspecto, em outro texto de minha autoria, dou mais ênfase a essa sua grande meritória qualidade.
Com diz o ditado, “ninguém é de ferro”. Devido às características do clima de nossa Campos do Jordão, que durante o inverno apresenta temperaturas baixas, chegando a alguns graus abaixo de zero, é comum que as pessoas cheguem a abusar um pouco do consumo das bebidas alcoólicas de diversos tipos, especialmente da danada da pinguinha.
Bem, vamos ao nosso tema, envolvendo os dois protagonistas devidamente identificados e que resultaram no “tombo do gigante”.
Na oportunidade mencionada no início, naquele horário e local, como dissemos, estavam Piau e Antenorzão. O frio não era tão intenso naquela noite, porém dava para ser muito bem sentido. Nossos dois amigos já haviam bebido muito mais do que era necessário para suportar e espantar o frio. Estavam, como se costuma dizer na linguagem popular, “pra lá de Marrakech”.
O Piau, com seu tradicional chapéu, do qual nunca se separava, quase sempre colocava as duas mãos, uma em cada bolso da calça, e puxava um pouco para cima até a altura da cintura, chegando até a ficar com as pernas da calça um pouco curtas. Andava assim de um lado para outro e, de vez em quando, dava umas cambaleadas, sempre com um assobio uníssono muito característico, nos lábios. Nunca perturbou ninguém ou faltou com o respeito com quem quer que seja. Não admitia que alguém o chamasse de Piau ou de Piranguçu. Se isso viesse a acontecer, aí sim, perdia o respeito e xingava o indivíduo de FDP.
O Antenorzão também, nunca perturbou este ou aquele e sempre respeitou todos.
Numa dessas rápidas e cambaleantes idas e vindas, o Piau passou em frente ao Antenorzão que, devido ao seu estreito grau de amizade, sem se lembrar do tratamento de que o amigo não gostava, resolveu cumprimentá-lo assim: “Ô, Piau”.
Imediatamente o Piau, quase automaticamente, já chamou o Antenorzão de FDP. O Antenorzão ficou furioso. Fechou os punhos, levou seu forte braço direito bem para trás, tomou o embalo necessário e veio com toda sua raiva e força para acertar um murro na cara do Piau.
Exatamente naquele instante, em frações de segundos, quando o soco do Antenorzão estava quase atingindo o Piau, este deu uma cambaleada inesperada e saiu da frente do perigo.
O Antenorzão, com todo o embalo que havia tomado, com toda a sua fúria, não encontrando seu alvo, passou reto e meteu a cara no tronco de um “platanus”, árvore que normalmente decora as calçadas de nossas vias públicas. Bateu a cara e já caiu de costas com o rosto todo ensangüentado.
Como não houve qualquer possibilidade de evitar o ocorrido, em razão da rapidez com que aconteceu, as pessoas que se encontravam no local vieram imediatamente em seu socorro.
Dada a gravidade da lesão, houve necessidade de chamar um táxi e levar o Antenorzão para o Pronto Socorro, onde foi atendido e medicado, necessitando de alguns pontos perto do nariz. Saiu de lá com um imenso curativo na cara.
O Piau assistiu a todas as providências de socorro que estavam sendo prestadas ao amigo, impassível, sem entender bem o que havia acontecido, sem imaginar o que, realmente, havia ocorrido.
Este foi o “tombo do gigante”. O Piau, com toda sua condição física em visível desvantagem com a de seu oponente, um gigante, mesmo nada fazendo de propósito, sem qualquer intenção de se livrar da iminente e inesperada agressão, quase levou o Antenorzão ao nocaute.
Claro, se o Antenorzão tivesse acertado o soco na cara do Piau, as conseqüências poderiam ter sido piores, talvez indesejáveis, por causa de sua total falta de condição de prever que seria agredido.
Passados os piores momentos desse fato, que veio a ocorrer quase inconscientemente, dada a falta de condições de normalidade dos protagonistas, motivada pelo excesso da “danada bebidinha”, em outra oportunidade, ambos se encontraram e selaram sua antiga e verdadeira amizade com um grande aperto de mãos.
Caso simples, real, até jocoso, que fica para a nossa história, sem qualquer demérito para seus protagonistas. Dignos de elogios, pois, mesmo tomando conhecimento real dos fatos ocorridos, jamais guardaram qualquer tipo de ressentimento um do outro, continuando amigos para sempre.
Edmundo Ferreira da Rocha
01/05/2007
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